sexta-feira, 13 de janeiro de 2023

Paraíba: um estado rural e suas contradições


O último censo demográfico realizado no Brasil, em 2010, apurou que 24,6% da população paraibana é domiciliada na zona rural, mas essa estatística é sabidamente subestimada, como aliás ocorre em todo o país [1], constatação que se tornou consensual no meio acadêmico brasileiro desde a publicação, em 2002, do já clássico “Cidades Imaginárias: o Brasil é menos urbano do que se calcula”, de José Eli da Veiga.

Com efeito, 40% da população paraibana está concentrada em apenas seis municípios, quatro deles situados na região metropolitana da capital (João Pessoa, Bayeux, Cabedelo e Santa Rita), com 1 milhão de habitantes, bem como em Campina Grande (385 mil) e Patos (100 mil), mas 90 municípios paraibanos (40%) apresentaram populações rurais superiores às populações urbanas e 191 (85%) têm densidades demográficas menores do que 150 hab./km², sendo que 120 (54%) com taxas abaixo de 50 hab./km² (IBGE, 2010). Esses indicadores evidenciam a natureza rural do estado da Paraíba, conforme as tipologias de Organismos Internacionais [2].

Pode-se argumentar que a participação de apenas 3,6% da agropecuária no PIB estadual [3] invalidaria tal caracterização, mas a Paraíba – especialmente sua ampla porção semiárida – pode ser caracterizada como “um campo economicamente esvaziado, mas socialmente vivo [pois] o bioma Caatinga configura-se como o maior polo contínuo de ruralidades no país, mas com baixa participação do valor agregado pelas atividades agropecuárias no valor agregado total, no qual dominam os serviços” [4]. De mais a mais, a Paraíba apresenta uma cultura fortemente marcada pela ruralidade enquanto “categoria histórica” [5], o que lhe confere um ethos marcadamente rural, que tem o seu epítome nos festejos de São João, o maior evento turístico do estado.

Nesse panorama, ressalta a presença camponesa, pois 77% dos estabelecimentos agropecuários paraibanos foram classificados como pertencentes à “agricultura familiar” no último Censo agropecuário (IBGE, 2017), cuja metodologia excluiu da classificação milhares de estabelecimentos que ampliaram sua “pluriatividade” no interstício entre este e o Censo anterior, realizado em 2006 [6], o qual havia contabilizado essa taxa em 88,5% (IBGE, 2006). Considerando que a articulação das atividades agrícolas com ocupações não agrícolas pelos membros da unidade produtiva familiar faz parte de sua “estratégia de reprodução” [7] e reforçam a “resistência camponesa” no mundo contemporâneo [8], penso que o Censo agropecuário de 2006 registra com mais precisão a presença camponesa na Paraíba.

De fato, um estudo utilizando dados do Censo Agropecuário de 2006 [9] apurou que a densidade de estabelecimentos familiares [10] na Paraíba é bastante alta, pois das 20 microrregiões mais densas do Brasil, todas do Nordeste, seis são paraibanas, cinco delas no Agreste, nas microrregiões de Campina Grande, Esperança, Curimataú Oriental, Brejo paraibano e Guarabira e uma na Zona da Mata, na microrregião de Sapé.

Nesse contexto ressaltam dois grandes problemas: a histórica concentração fundiária, expressa por um estratosférico coeficiente de Gini de 0,755 (confira aqui), e a minifundiarização, já que o estado apresenta a menor área média dos estabelecimentos familiares no país (11,5 hectares, contra 14,1 ha. no Nordeste e 20,8 ha. no Brasil) [11]. De fato, enquanto 76,9% dos estabelecimentos rurais do estado são da Agricultura Familiar, estes detêm apenas 42,1% da área, ao passo que os 23,1% dos estabelecimentos não familiares concentram 57,9% da área total, conforme se pode verificar no gráfico abaixo.

Fonte: Elaboração própria com dados do Censo Agropecuário 2017


Sem embargo, a Agricultura Familiar é um importante fator de geração de receitas e empregos no estado, pois 73,4% das pessoas ocupadas na agropecuária paraibana estão nos estabelecimentos familiares, os quais respondem por 44,5% das receitas do setor agropecuário paraibano [12].

Essa é uma realidade que se reproduz há séculos na Paraíba, onde o extraordinário potencial do povo trabalhador do campo vem sendo solapado pelos interesses das elites agrárias que se perpetuam nas estruturas de poder no estado. Assim, é fundamental que o Governo Lula III enfrente, com coragem e energia, a questão agrária paraibana para - junto ao povo camponês, suas organizações e aliados - inaugurar um novo tempo de esperança e prosperidade para a Paraíba, esse lindo estado rural.


[1] DELGADO, N.G.; LEITE, S.P.; SCHMITT, C.J.; GRISA, C.; KATO, K.; WESZ JUNIOR, V. J. Tipologias de ruralidades em agências multilaterais e organismos internacionais selecionados. In MIRANDA, C.; SILVA, H. (orgs.), Concepções da ruralidade contemporânea: as singularidades brasileiras. Brasília: IICA, 2013 (Série Desenvolvimento Rural Sustentável; v. 21).

[2] Idem.

[3] BEZERRA, F.J.A; BERNARDO, T.R.R., XIMENES, L.J.F.; VALENTE JUNIOR, A.S. Perfil socioeconômico da Paraíba. Fortaleza: Banco do Nordeste do Brasil, 2015.

[4] BITOUN, J.; MIRANDA, L.; SOARES, F.; LYRA, M.R.; CAVALCANTI, J. Tipologia regionalizada dos espaços rurais brasileiros. In MIRANDA, C. (org.) Tipologia regionalizada dos espaços rurais brasileiros: implicações no marco jurídico e nas políticas públicas. Brasília: IICA, 2017 (Série Desenvolvimento Rural Sustentável; v. 22), p. 10-11.

[5] WANDERLEY, M.N.B. A emergência de uma nova ruralidade nas sociedades modernas avançadas: o “rural” como espaço singular e ator coletivo. In O mundo rural como espaço de vida: reflexões sobre a propriedade da terra, agricultura familiar e ruralidade. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2009, p. 204.

[6] DEL GROSSI, M.; FLORIDO, A.C.S.; RODRIGUES, L.F.P.; OLIVEIRA, M.S. Comunicação de pesquisa: delimitado a agricultura familiar nos censos agropecuários brasileiros. Revista NECAT, 8 (16), 2019: 40-45.

[7] SCHNEIDER, S. A pluriatividade na agricultura familiar. 2ª ed. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2009.

[8] PLOEG, J.D. van der. Camponeses e impérios alimentares: lutas por autonomia e sustentabilidade na era da globalização. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2008, p. 49.

[9] LANDAU, E.C.; GUIMARÃES, L.S.; HIRSCH, A.; GUIMARÃES, D.P.; MATRANGOLO, W.J.R.; GONÇALVES, M.T., Concentração geográfica da Agricultura Familiar no Brasil. Sete Lagoas: Embrapa Milho e Sorgo, 2013.

[10] Número de estabelecimentos familiares/100 km²

[11] TARGINO, I.; MOREIRA, E. Agricultura familiar na Paraíba: Perfil com base no Censo Agropecuário de 2017, Revista Econômica do Nordeste, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 133-154, agosto, 2020, p. 136.

[12] Idem, p. 137.


sexta-feira, 6 de janeiro de 2023

Desenvolvimento Agrário abandona a Política Territorial. E isso é um erro.


A falta de continuidade das políticas públicas no Brasil é uma chaga viva na nossa história republicana. Afora as rupturas provocadas pelos golpes de Estado e as alterações próprias da alternância democrática nos poderes constituídos, verificam-se também mudanças de rumos na sucessão de governos de um mesmo partido ou campo político.

É o que está acontecendo na configuração do novo Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDAF), ele próprio um órgão marcado pela descontinuidade, pois, em 38 anos desde a sua criação, o ministério teve apenas 19 anos em efetivo funcionamento. Refiro-me ao abandono da Política Territorial como elemento agregador dos programas e ações do MDAF, como já apontamos quando festejamos a recriação do ministério. Agora quero explicar porque faço essa crítica.

A chamada "estratégia territorial de desenvolvimento rural" - uma abordagem formulada no debate acadêmico nos anos 1980-1990 e praticada por governos europeus desde então - foi adotada pelo MDA em 2003, no início do primeiro Governo Lula, com a criação da Secretaria de Desenvolvimento Territorial (SDT) na estrutura do ministério, com três objetivos: (a) superar o "setorialismo" das políticas públicas para os povos do campo, sabidamente deletéria conforme a literatura especializada; (b) otimizar a aplicação de recursos humanos e financeiros na implementação de políticas públicas no meio rural em face do paradoxo entre a centralização do Estado e a fragmentação municipalista no pacto federativo brasileiro; e (c) fomentar a participação social no planejamento, implementação e monitoramento das políticas públicas desenvolvidas nos territórios rurais.

Esses objetivos foram colocados em prática por meio do Programa Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável dos Territórios Rurais (PRONAT), que ficaria conhecido como Programa Territórios da Cidadania a partir do segundo Governo Lula. Esse processo foi acompanhado, assessorado e avaliado por centenas de grupos de pesquisa de universidades públicas brasileiras selecionados em dois Editais públicos do CNPq: o Projeto Células de Acompanhamento e Informação (CAI) e o Projeto Núcleos de Extensão em Desenvolvimento Territorial (Projeto NEDETs), que produziram uma vasta produção acadêmica sobre a experiência.

Eu dirigi a CAI Borborema, o NEDET Borborema, Curimataú e Seridó Paraibano e fiz parte da Comissão de Coordenadores que assessorou a SDT durante o desenvolvimento dos dois projetos. Em virtude disso, publiquei vários trabalhos sobre a experiência, apontando limitações, avanços e potencialidades (aquiaqui, aqui, aqui e aqui), mas quero agora ressaltar os resultados de uma pesquisa de opinião que realizamos no primeiro semestre de 2016 com 3.918 integrantes dos colegiados de 146 Territórios Rurais (TRs) localizados em todas as Unidades da Federação do Brasil (sobre a metodologia da pesquisa, leia aqui).

Como uma tendência geral da pesquisa, a dimensão melhor avaliada pelos respondentes foi a que se relaciona aos resultados concretos da política territorial que, grosso modo, podem ser resumidos assim:

  • Os investimentos públicos nos ativos territoriais foram bem sucedidos, o que pode ser verificado, pelo desempenho do PROINF, que financiou 8.141 projetos produtivos nas diversas regiões do país, sendo que o maior volume de recursos foi destinado ao Nordeste, um montante de R$ 755 milhões (38% do total), ou R$ 1,1 bilhão em valores atualizados, onde foram construídos 361 centros de comercialização, 94 agroindústrias, 69 casas de mel, 58 Escolas Famílias Agrícolas, 45 abatedouros, 35 casas de farinha, entre outros inúmeros projetos.
  • Os colegiados territoriais promoveram a ampliação da participação sociedade civil na gestão de políticas públicas e levaram ao empoderamento dos atores sociais e suas organizações, pois estes têm conseguido assumir posições de liderança político-administrativa, inclusive por meio eleitoral nos seus territórios de origem.
  • Várias políticas públicas foram "territorializadas", como PAA e o SUASA, por  exemplo, o que levou à otimização do seu desempenho.
  • A experiência fomentou a aprendizagem dos atores sociais, pois estes reconhecem ganhos no conhecimento das dinâmicas territoriais, dos desafios do desenvolvimento e das políticas públicas.
  • A estratégia territorial levou ao melhoramento dos laços sociais dos atores envolvidos - aliás, o indicador melhor avaliado na pesquisa - indicando que a dinâmica territorial favoreceu a cooperação entre as pessoas, alimentou o seu sentimento de pertença (identidade) e fortaleceu o capital social, base do desenvolvimento territorial. 

Isso significa que, embora envolta em dificuldades, paradoxos e dilemas, a política territorial implementada como estratégia de desenvolvimento rural entre os anos de 2003 e 2016 no Brasil foi bem sucedida em seus objetivos últimos.

Daí eu pergunto: por que abandoná-la?

quinta-feira, 5 de janeiro de 2023

Paraíba: trezentos anos de história camponesa

 

Caro leitor, cara leitora. Hoje dou início à postagem de excertos de textos acadêmicos publicados e também de textos inéditos que produzi nos últimos anos sobre o campesinato, trabalhadores e trabalhadoras rurais, comunidades tradicionais, o Semiárido, a Paraíba e as políticas públicas desenvolvidas para esses povos e territórios. É uma maneira de dar a minha contribuição para a popularização do debate científico. As notas são apenas para referências bibliográficas obrigatórias e a leitura delas é opcional.

*****

A campesinização [1] do espaço agrário paraibano começou no limiar do século XVIII, como de resto em todo o Nordeste oriental [2], a partir de três vertentes relacionadas à dinâmica da agroindústria açucareira, “nervo e substância” [3] da economia do Brasil colonial.

Em primeiro lugar, no início do século XVIII verifica-se uma queda vertiginosa dos preços internacionais do açúcar em função da concorrência do produto antilhano, o que compeliu os senhores de engenho a aprofundarem a sua recalcitrância em produzir qualquer outra coisa que não fosse o açúcar e se fixarem exclusivamente na produção dessa commodity. Em decorrência disso, observa-se “a constituição de comunidades de cultivadores pobres e livres” [4] nos rebordos das florestas virgens da Zona da Mata, através de um “processo de conversão” [5] de homens e mulheres pobres em cultivadores de gêneros de subsistência, especialmente a mandioca, base da alimentação da população escrava e livre, bem como das tripulações das muitas frotas portuguesas que na colônia aportavam.

Em meados do século XVIII, fontes coevas registravam “uma grande expansão – espacial e numérica – desse tipo de unidades produtoras” na Zona da Mata paraibana [6], mas a pressão fundiária sobre as melhores terras agricultáveis da Paraíba levaria à expulsão da maioria das comunidades camponesas pelo Estado colonial em favor dos interesses dos grandes proprietários, fixando-se elas, então, no Agreste, onde desenvolveriam uma “agricultura de subsistência complementada pelo criatório voltado para o autoconsumo” [7].

Em segundo lugar, e pela mesma razão, premia a ampliação e priorização econômica da plantation, o que levou a administração régia a proibir a criação de gado na zona canavieira em 1701, empurrando essa atividade para a extensa hinterlândia semiárida paraibana, até então inexplorada, onde se desenvolveria outro segmento do campesinato paraibano, formado por escravos e “pobres livres” que acompanharam os criadores de gado e pelos índios que sobreviveram à política de extermínio promovido pela Coroa Portuguesa [8] como suporte à chamada “frente de expansão pecuária” [9].

Escravos forros, pobres livres e índios “pacificados” seriam empregados como vaqueiros e, com suas famílias, desenvolveriam a pequena produção de alimentos na órbita das fazendas de gado no Sertão e Cariri. Alguns deles tornar-se-iam pequenos proprietários, pois, como apontou Capistrano de Abreu, “depois de quatro ou cinco anos de serviço, começava o vaqueiro a ser pago; de quatro crias cabia-lhe uma; podia-se assim fundar fazenda por sua conta” [10], mas a imensa maioria deles sobreviveria como arrendatários, parceiros, meeiros, “jornaleiros” ou, no limite, mendigando nas vilas e cidades que iam surgindo naquelas vastidões incultas.

Finalmente, mas não menos importante, no mesmo período processa-se a formação de um “protocampesinato negro” nas “brechas” do sistema escravista da agroindústria canavieira nordestina [11], seja pela concessão de lotes aos escravos destinados à produção de gêneros para a sua própria subsistência [12], parcelas essas não raro  passíveis de transmissão a descendentes ou confrades [13], redundando em “uma frequência progressivamente maior de núcleos familiares estáveis” [14], seja pelas comunidades quilombolas, cuja história das origens na Paraíba ainda precisa ser registrada [15], mas que, hoje, resistem em 36 assentamentos espalhados por todo o estado [16].

Em 300 anos de história camponesa, o estado da Paraíba experimentou vários processos de descampesinização de seus espaços agrários, sempre movidos, com maior ou menor violência, pelos interesses econômicos das elites mandatárias e dos grandes proprietários rurais, mas também vivenciou diversos processos de recampesinização, fruto de transições produtivas não conflitantes com aqueles interesses, mas conquistados e mantidos pela resiliência de camponeses e camponesas.

Por exemplo, na Zona da Mata, que apresenta os melhores solos e o regime pluviométrico mais favorável da Paraíba e, por isso mesmo, onde até hoje dominam os grandes plantadores de cana-de-açúcar – principal produto agrícola do estado e responsável por cerca de 35% do valor total da produção agropecuária paraibana, incluindo-se a agroindústria [17] – a pequena propriedade camponesa tem o seu lugar, destacando-se como a maior produtora de abacaxi e mandioca [18], as lavouras temporárias mais rentáveis do estado depois da cana-de-açúcar, também majoritariamente cultivadas nesse espaço agrário, entre outras culturas alimentares.

Por outro lado, nas mesorregiões do Agreste, Borborema e Sertão – onde a cotonicultura prosperou a partir do final do século XVIII e por todo o século XIX – estabeleceu-se “o tripé da produção semiárida, gado-algodão-culturas alimentares” [19], processo que favoreceu a consolidação da pequena propriedade camponesa surgida no entorno das grandes fazendas de gado em virtude da “expansão dos sistemas de parceria e arrendamento, formas de trabalho características da região” [20] e que levaria ao seu predomínio atual nesses espaços agrários, mesmo após a crise que se abateu sobre a cultura do algodão nas décadas de 1980 e 1990 e a consequente expulsão de muitos camponeses com o fim do “sistema de morada” [21].

Entrementes, a partir do final dos anos 1950, após séculos de exclusão socioeconômica e submissão política forçada pelas oligarquias dominantes, o campesinato paraibano começa a se organizar politicamente nas Ligas Camponesas que logo seriam esmagadas pela ditadura militar e seus acólitos [22]. Mas, com o processo de “abertura política” iniciado em meados dos anos 1970, camponeses e camponesas da Paraíba passam a protagonizar processos de organização social, política e produtiva por meio da articulação de movimentos sociais, sindicatos rurais, coletivos, associações e cooperativas de produtores familiares, tendo como aliados parceiros institucionais como ONGs, a sociedade civil organizada, organismos de cooperação internacional e as universidades públicas espalhadas pelo estado. 

Contudo, esse processo não foi pacífico, mas resultado de uma luta heróica. João Pedro Teixeira, Nego Fuba e Margarida Maria Alves são mártires dessa luta.

Entendemos que a resiliência camponesa na Paraíba deveu-se, fundamentalmente, à reconfiguração organizativa desse campesinato no início dos anos 1980 sob os influxos do “novo sindicalismo”, aos aliados que ele foi capaz de angariar a partir de então, aos processos de conversão produtiva construídos nos quadros dessa relação – notadamente a “transição agroecológica” [23] – e às políticas públicas que potencializaram e deram sustentabilidade ao seu empoderamento econômico, social e político, cujos principais marcos são: (a) a universalização da aposentadoria rural no início dos anos 1990; (b) a criação  do Programa Nacional de  Apoio à Agricultura Familiar (PRONAF) em 1996; e (c) o conjunto de políticas e programas implementado pelos governos de Luís Inácio Lula da Silva (2003-2010) e Dilma Rousseff (2011-2016), quando o campesinato e suas organizações conquistaram um real protagonismo na pauta do Orçamento Geral da União e no diálogo com o Governo Federal.

Como sabemos, tudo isso foi desarticulado pelos governos Temer e Bolsonaro, mas os camponeses, as camponesas e suas organizações seguem resilientes na Paraíba e, agora, estão firmes e prontos para escrever um novo capítulo de sua História com Lula Presidente.



[1] PLOEG, J.D. van der. Camponeses e impérios alimentares: lutas por autonomia e sustentabilidade na era da globalização. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2008.

[2] PALACIOS, G. Campesinato e escravidão: uma proposta de periodização para a história dos cultivadores pobres livres no Nordeste Oriental do Brasil. C. 1700-1875. Dados – Revista de Ciências Sociais, 30 (3), 1987, p. 327.

[3] BRANDÃO, A.F., Diálogos das grandezas do Brasil. 3ª ed. (segundo o apógrafo de Leiden, org. por José Antônio Gonsalves de Mello). Recife: Massangana, 1997 [1618], p. 86.

[4] PALACIOS, op. cit., p. 329.

[5] Idem, p. 330.

[6] Idem, p. 333.

[7] MOREIRA, E.; TARGINO, I. Capítulos de geografia agrária da Paraíba. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 1997, p. 80.

[8] PUNTONI, P. A guerra dos bárbaros: povos indígenas e a colonização do sertão Nordeste do Brasil, 1650-1720. São Paulo: Hucitec; EDUSP; Fapesp, 2002, p. 17.

[9] FURTADO, C. Formação econômica do Brasil. 10ª ed. São Paulo: Editora Nacional, 1970, p. 59.

[10] ABREU, J.C. Capítulos de história colonial (1500-1800). 7ª ed. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1988 [1907], p. 170.

[11] CARDOSO, C. S. Escravo ou camponês? O protocampesinato negro nas Américas. São Paulo: Brasiliense, 1987.

[12] Idem, p. 95.

[13] Idem, p. 102.

[14] Idem, p. 113.

[15] FORTES, M.E.P.; LUCCHESI, F. Comunidades quilombolas na Paraíba. In BANAL, A.; FORTES, M.E.P. (orgs.), Quilombos da Paraíba: A realidade de hoje e os desafios para o futuro. João Pessoa: Imprell, 2013, p. 48.

[16] BANAL, A. A via crucis das comunidades quilombolas da Paraíba. In BANAL, A.; FORTES, M.E.P. (orgs.), Quilombos da Paraíba: A realidade de hoje e os desafios para o futuro. João Pessoa: Imprell, 2013, p. 36.

[17] CANIELLO, M. (org). A Paraíba vista pelo NEPP-PB. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2023, no prelo.

[18] Idem.

[19] MOREIRA; TARGINO, op. cit., p. 79.

[20] Idem, p. 78.

[21] WANDERLEY, M.N.B. O campesinato brasileiro: uma história de resistência. Revista de Economia e Sociologia Rural, 52 (4), Supl. 1, 2014, p. 27.

[22] CARNEIRO, A; CIOCCARI, M. Retrato da repressão política no campo – Brasil, 1962-1985: camponeses torturados, mortos e desaparecidos. Brasília: MDA, 2011, p. 27.

[23] CAPORAL, F.; COSTABEBER, J.A. Agroecologia e desenvolvimento rural sustentável: perspectivas para uma nova extensão rural. Agroecologia e Desenvolvimento Rural Sustentável, Porto Alegre, v.1, n.1, 2000.


quarta-feira, 4 de janeiro de 2023

Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, seja bem-vindo!!


Fiquei muito emocionado ao participar da posse do Ministro Paulo Teixeira no recriado Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDAF), nesta terça-feira, 03/01. Isso porque a Pasta tem um histórico tardio e tortuoso, pois se dedica aos "grupos subalternos" da economia rural brasileira, no sentido gramschiano do termo. Isto é, um Ministério dedicado aos camponeses, agricultores familiares, proletariado do campo, trabalhadores rurais sem terra e pequenos produtores tradicionais (índios, quilombolas, etc.),  povos pauperizados e historicamente alijados do acesso a serviços e políticas públicas, os quais, paradoxalmente, são os responsáveis pela segurança alimentar da Humanidade.

Ora, enquanto o Ministério da Agricultura, dedicado ao "agronegócio" produtor de commodities, tem a sua origem em 1860 com a criação da "Secretaria de Estado dos Negócios da Agricultura, Comércio e Obras Públicas" por Dom Pedro II, o Ministério da Reforma e do Desenvolvimento Agrário (MIRAD) seria criado, tão somente, em 1985, ou seja, 125 anos depois (!!), pelo presidente José Sarney, que, entretanto, o extinguiria após apenas três anos de funcionamento, no início de 1989. Depois, foi preciso ocorrer o terrível massacre de Eldorado do Carajás, em 1996, para que o presidente Fernando Henrique Cardoso nomeasse um "ministro de Estado Extraordinário de Política Fundiária", mas, FHC institucionalizaria o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) somente em janeiro de 2.000, no seu segundo mandato.

Nos governos Lula e Dilma, o MDA se consolidou fortemente e tornou-se um importante instrumento de desenvolvimento para a Agricultura Familiar no Brasil. Primeiro, Lula criou o Plano Safra da Agricultura Familiar logo no início do seu governo, cujo orçamento evoluiu de R$ 4,2 bilhões na safra 2002-2003 para R$ 24,1 bilhões em 2014-2015, um extraordinário aumento de 474%. O PRONAF, criado por FHC em 1995, “carro-chefe” do Plano Safra da AF, teve R$ 18 bilhões disponíveis para as linhas de custeio, investimento e comercialização na safra 2013-2014, um avanço de mais de 300% em relação ao primeiro ano do Plano Safra da AF.

Criado em 2008, o Programa Mais Alimentos – uma das linhas de crédito do PRONAF diretamente associada às políticas de combate à fome e redução da miséria – financiou cerca de R$ 15,5 bilhões, beneficiando mais de 400 mil famílias da agricultura familiar em todo o Brasil. 

No que tange ao Garantia-Safra, instituído em 2002 visando garantir renda mínima às famílias com perdas devido à falta de chuva, em dez anos, o seguro pagou R$ 2,6 bilhões, realizando mais de 2,9 milhões de transferências a famílias de agricultores familiares do Semiárido brasileiro. O Seguro da Agricultura Familiar (SEAF) surgiu dois anos depois e, em oito anos, investiu R$ 2,7 bilhões. Foram realizados cerca de 4,5 milhões de contratos, que beneficiaram mais de 500 mil agricultores. Na safra 2012/2013, Garantia-Safra e SEAF somados disponibilizaram quase R$ 900 milhões

É de se ressaltar, ainda, que os investimentos em assistência técnica e extensão rural (ATER) foram os que mais cresceram nos primeiros dez anos de existência do Plano Safra da Agricultura Familiar, pois no seu primeiro ano foram destinados R$ 46 milhões, enquanto a safra 2012/2013 disponibilizou R$ 540 milhões para o setor, um aumento de mais de 1.000%. 

Ademais, os Governos Lula e Dilma foram inovadores e extremamente benfazejos à Agricultura Familiar ao criarem programas focados nas chamadas “compras governamentais”, uma política pública importante, pois articulam o estímulo à produção familiar e a segurança alimentar da população, especialmente os beneficiários das estratégias de desenvolvimento rural e de combate à fome e à miséria nos países em desenvolvimento, inclusive no Brasil (saiba mais). 

Nesse sentido, o Governo Lula criou o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) – que adquiria alimentos da Agricultura Familiar para distribuição entre entidades filantrópicas, organizações não governamentais dedicadas ao combate à fome e à miséria, hospitais, etc. – e inovou o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) ao determinar que no mínimo 30% do valor repassado pelo Governo Federal para a merenda escolar deve ser utilizado na compra de gêneros alimentícios da Agricultura Familiar. 

Entre 2003 – seu ano de lançamento – até 2016, quando começou a ser desarticulado em decorrência do golpe contra a Presidenta Dilma – o PAA beneficiou mais de 400 mil agricultores e foram adquiridas mais de 4 milhões de toneladas de alimentos de pequenos produtores. Em julho de 2010, a CONAB chegou a ter mais de 5,5 milhões de toneladas de milho armazenadas (veja aqui). No seu primeiro ano, o PAA recebeu um aporte de R$ 164,6 milhões, contra R$ 1,2 bilhão na safra 2012-2013, o que representa um aumento de recursos na ordem de 630%.

Cumpre mencionar, finalmente, a implementação do Programa Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável dos Territórios Rurais (PRONAT), uma outra política pública muito importante, a qual já analisamos em vários trabalhos. No período de 2003 a 2015, o MDA repassou R$ 3,3 bilhões em recursos do Tesouro Nacional, a fundo perdido, para os Territórios Rurais e Territórios da Cidadania através do Programa Ação de Apoio a Projetos de Infraestrutura e Serviços em Territórios Rurais (PROINF), que financiou 8.141 projetos produtivos nas diversas regiões do país, sendo que o maior volume de recursos foi destinado ao Nordeste, um montante de R$ 755 milhões (38% do total), ou R$ 1,1 bilhão em valores atualizados. No Nordeste foram construídos 361 centros de comercialização, 94 agroindústrias, 69 casas de mel, 58 Escolas Famílias Agrícolas, 45 abatedouros, 35 casas de farinha, entre outros inúmeros projetos, e ainda foram promovidos 276 cursos de capacitação com recursos do PROINF/PRONAT.

Em consequência das políticas públicas implementadas pelos Governos Lula e Dilma para os povos do campo, na denominada "década da inclusão", na qual todos os indicadores sociais evoluíram extraordinariamente no Brasil, "a renda cresceu mais nas áreas rurais pobres, 85,5%, contra 40,5% nas metrópoles e 57,5% nas demais cidades" (Neri e Souza, 2012) e “mais de 3,7 milhões de pessoas das áreas rurais entraram na classe média” (FAO/IFAD/WFP, 2014).

Esse conjunto de políticas públicas para os povos do campo foi interrompido pelo governo golpista de Michel Temer e sepultado pelo governo fascista de Jair Bolsonaro, que promoveram um amplo processo de desmonte das políticas públicas inclusivas e progressistas implementadas pelos governos do PT. No âmbito do desenvolvimento rural, tudo começou pela a extinção do MDA, uma das primeiras medidas de Michel Temer, tomada ainda no decorrer do processo de impeachment da Presidenta Dilma Rousseff.

Agora, o MDAF renasce mais uma vez com um programa de ação ambicioso, conforme proposto no Relatório Final do Grupo Técnico de Desenvolvimento Agrário do Gabinete de Transição, com as seguintes ações principais:

  • Ampliação da disponibilidade de alimentos a baixo custo para a população por meio do fomento à produção da AF;
  • Retomada do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e constituição da Política Nacional de Abastecimento, através da CONAB, agora na estrutura do MDAF;
  • Recriação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar (CONSEA), aliás já publicada no Diário Oficial de 01/01/2023;
  • Retomada do Plano Safra da Agricultura Familiar, com a reformulação do PRONAF e do seguro rural;
  • Retomada da Política Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural por meio da criação do Sistema Nacional de ATER, sob a coordenação da Agência Nacional de ATER (ANATER), que terá seu papel institucional e funcional redefinido;
  • Implementação da transição agroecológica como princípio articulador de ações e políticas em todas as áreas do Ministério, incidindo na produção de alimentos saudáveis com base em manejos sustentáveis;
  • Resgate do Programa Nacional de Redução de Agrotóxicos, o PRONARA;
  • Instituição do novo Programa Nacional de Reforma Agrária (PNRA), com ênfase na retomada da obtenção de terras, execução do crédito instalação e desenvolvimento dos assentamentos. 
  • Reestruturação do INCRA, pois as mudanças realizadas pelo governo Bolsonaro descaracterizaram o papel da autarquia na reforma agrária. O novo INCRA também deverá agilizar os processos de reconhecimento territorial, demarcação e titulação dos territórios quilombolas, bem como na mediação dos conflitos agrários e ambientais e pelo fim da violência no campo.
Infelizmente, a estratégia territorial de desenvolvimento rural está praticamente ausente no novo Ministério, o que precisa ser revisto, principalmente em virtude do "capital social" acumulado nos Colegiados Territoriais, hoje adormecido em decorrência do esvaziamento provocado pela asfixia que lhes impôs os governos Temer e Bolsonaro. O MDAF não pode prescindir dos homens e mulheres que se dedicaram à "gestão social" nos Territórios Rurais durante 13 anos, uma força ativa ainda muito viva e fundamental neste novo tempo de esperança para os povos do campo do Brasil.

sábado, 31 de dezembro de 2022

O Jair se foi. Agora é Lula!

 

A ópera-bufa acabou e o seu último ato, encenado antes do final do enredo, mais patético não poderia ser: a um dia do término do seu mandato, Bolsonaro faz uma live chorosa para a sua plateia de abobalhados, aparelha o avião presidencial, coloca um bando de cupinchas dentro e escafede-se para Orlando. Suprema covardia do pior presidente da história do Brasil, afora a cafonice/canalhice que lhe é peculiar. Burlesco. Vade retro.

Agora é Lula!

sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

Milésimo gol de Pelé: a minha mais remota lembrança de um jogo de futebol

O futebol é parte fundamental da minha vida. Adoro. Acompanho tudo quanto é campeonato, copa, torneio. Futebol masculino, feminino, categorias de base. Só não gosto de amistoso, pois vejo futebol, única e exclusivamente, para torcer. Torcer para o meu time e qualquer time que eu escolha quando o meu não está jogando, o que envolve uma complexa operação ideológica a cada peleja (um dia ainda escrevo sobre isso). Torcer contra os rivais do meu time, contra aqueles times que ameaçam a posição do meu na disputa e torcer pelos times pequenos quando jogam contra times grandes.

Essa paixão surgiu com a convivência com o meu avô, Olympio de Mattos, um apaixonado pelo futebol a ponto de ter sido presidente do  1º de Maio, um antigo (e extinto) time da minha cidade, Ouro  Fino. Era o final dos anos 1960 e vovô, juntamente com meus tios Ethewaldo e João Marinelli, eram donos do "Bar do Paulo", o principal da cidade, único ponto de venda de jornais e dos sorvetes Kibom. Ponto de encontro de homens que falavam, sobretudo, de futebol. No turno do vovô, eu sempre estava por lá, "ajudando" e filando doces.

Tínhamos uma camaradagem muito bacana, eu e vovô Olympio. Nos fins de semana, ele me levava ao "Estádio Capitão Armando" para ver os jogos dos times locais e, com ele, eu assistia aos vídeo tapes (VTs) dos jogos do campeonato paulista, pois Ouro Fino fica no sul de Minas, a 200 quilômetros de São Paulo, capital. Ali, naquela época, quase todo mundo torcia para os times paulistas...

Vovô era corintiano roxo e eu, para a sua mais profunda decepção, me tornei palmeirense, também roxo. Francamente, não me lembro como tomei essa decisão, qual foi a influência decisiva, mas acho que foi porque o Palmeiras era a grande sensação na primeira temporada que realmente acompanhei, a de 1969. De fato, a "Academia" de Dudu e Ademir da Guia ganhou o Torneio Roberto Gomes Pedrosa, o "Robertão" naquele ano, do qual trago registrada a minha mais remota memória de um jogo de futebol. Aquele Vasco x Santos em que Pelé fez o seu milésimo gol.

Eu tinha oito anos e acompanhei o jogo na TV em preto e branco de um bar na Rua 13 de Maio, perto de uma pastelaria e da Livraria e Papelaria da Dona Ricardina, numa quarta-feira à noite, 19 de novembro. Lembro claramente da atmosfera meio sombria do bar cheio de homens e, principalmente, do que vi com os meus olhos de menino pela TV Tupi: o momento em que Pelé correu para a bola, deu um paradinha, bateu firme e Andrada quase pegou. Lembro de Pelé correndo para o gol e pegando a bola. Lembro da invasão do campo. Lembro de Pelé dedicando o gol às criancinhas. E não me lembro de nada mais. E precisa?

Sim, aquela foi uma noite memorável, mas que não interferiu na minha paixão pelo Palmeiras, que, poucos dias depois levantaria a taça do Torneio Roberto Gomes Pedrosa, sagrando-se campeão brasileiro.

Não importa. Pelé ficou para sempre na minha memória de menino. E hoje deve estar batendo uma bola no céu.


Eterno retorno

 

Sou um blogueiro bissexto. Volto novamente à escrita. Talvez por falta do que fazer. Talvez por ter que fazer alguma coisa nas férias. Talvez porque tenha voltado às caminhadas e, durante a primeira, hoje, tenha tido vontade de escrever sobre Pelé, que morreu ontem. Talvez porque seja 30 de dezembro e, só para ser diferente (kkk), eu não queira esperar o dia 1º de janeiro para mudar algumas coisas na minha vida. Sei lá. Volto a postar no Blog hoje. Até quando, não sei.

quarta-feira, 24 de novembro de 2021

Vamos precisar de todo mundo, por Jonas Paulo


“Um mais um é sempre mais que dois” 
Beto Guedes

O descalabro que as elites levaram o Brasil com o golpe contra o Governo da Dilma chegou ao limite de desestruturar a economia, esgarçar o tecido social e desmontar o Estado e as instituições públicas democráticas, pondo em risco a própria democracia, as liberdades civis e os direitos de cidadania.

A extrema-direita neofascista, desde 2013, foi às ruas, disseminou o ódio ao petismo, envolveu a direita neoliberal, ganhou a mídia oligárquica, o parlamento fisiológico e contagiou o judiciário e as forças de segurança e defesa, o que redundou na excrescência que está sentada na cadeira de presidente, e que sucumbiu na pandemia em criminosos negacionismo e charlatanismo, que teve como consequência mais de 600 mil mortos por covid na maior crise sanitária que o país já viveu.

O Brasil não tem mais orçamento, pois agora é secreto, não tem programa ou plano estratégico, desmontou o PAC e o PPI, extinguiu os programas sociais e de distribuição de renda e de valorização do Salário Mínimo. O governo passou a atuar por demanda pontual do capital financeiro e do grande capital, e virou refém das gigantes petrolíferas, além da forte tutela militar.

Se é verdade que o tecido econômico e social se dilacera a cada dia, também é verdadeira a cumplicidade e conivência do parlamento fisiológico que sustenta o governo e valida suas iniciativas nefastas ao país.

Portanto, derrotar esse esquema de poder da extrema-direita e reverter o atual estado de coisas não são coisas simplórias que se resolvam em atos e palavras de ordem espontâneas voluntaristas e pretensamente heroicas ou radicais. É necessário arregimentar forças democráticas políticas e sociais, mobilizar segmentos econômicos, mexer e, no mínimo, neutralizar a mídia oligárquica e conservadora, movimentar as redes, ruas e rádios e, principalmente, despertar um clima de indignação, inconformismo e revolta que está latente no povo trabalhador desempregado, uberizado, autônomo, no biscate, diarista, pauperizado vivendo na porta ou já integrado ao crescente batalhão de brasileiros e brasileiras na extrema pobreza e inscritos no mapa da fome.

Enfrentar esse quadro dramático requer um enorme esforço no dia-a-dia e muito diálogo e ação presencial, mesmo que resulte da ação nas redes. A solidariedade e o incentivo à mobilização e à atitude não têm como prescindir do “olho no olho”, da palavra que conforta e anima, além do indispensável caminhar lado a lado.

Vivemos um período pré-eleitoral de uma disputa que pode ser definitiva para interditar o projeto da extrema-direita pois tem na presença de Lula no cenário um contraponto e uma alternativa democrática real e de construção de um novo projeto para o país e, mais que isso, uma esperança acesa para o povo pobre e trabalhador de que é possível termos dias melhores.

Sendo Lula a principal liderança do PT, cabe ao nosso partido o protagonismo na construção da frente política das forças de esquerda e democráticas que conduzirá o processo de enfrentamento da candidatura presidencial da extrema direita.

A disputa eleitoral tem um caráter nacional, pois são os destinos da nação que estão em disputa, mas é nos estados onde se estruturam os palanques presidenciais, tendo papel importante as candidaturas de governadores, senadores e deputados como condutores e sustentáculos da candidatura presidencial. É nos estados e municípios onde o voto se materializa.

O cenário ideal é que a candidatura de Lula, que é muito sólida no plano nacional, busque construir palanques fortes e competitivos nos estados, particularmente nos maiores colégios eleitorais do país. Desta forma, sem dúvidas, não cabem candidaturas majoritárias nos estados apenas para marcar posição e aprisionar na sua baixa densidade eleitoral a forte candidatura presidencial de Lula, colocando uma bola de ferro no seu pé impedindo que ela cresça e caminhe para ter maioria nos estados. No cenário real do presidencialismo brasileiro, as alianças têm um papel importante nas eleições majoritárias, mesmo com as chapas proporcionais autônomas.

Nesse contexto, o Nordeste, onde está o maior número de governadores e senadores petistas, constituiu coalizões políticas e eleitorais com as forças de esquerda e de centro que não só foram vitoriosos nas eleições nos nove estados nordestinos, como garantiram as maiores margens de vantagem em votos às nossas candidaturas presidenciais, suprindo as margens desfavoráveis no Sul e Sudeste.

As coalizões, além das forças tradicionais da esquerda – PCdoB, PSB e PDT – têm, conforme o caso, parcerias com PSD, PP e, principalmente, o MDB. E, nessa lógica, os governos estaduais, diante das dificuldades institucionais com o governo federal, constituíram o Consórcio Nordeste e, envolvendo o PT, PSB, PDT, PCdoB, MDB e PSD, formaram um bloco sólido e uma frente política regional com repercussão nacional.

Nas condições atuais da disputa com a extrema-direita, é imprescindível garantir o arco de alianças e a densidade política nordestina, assim como a manutenção do mesmo diapasão no Norte, principalmente no Pará, Tocantins e Amazonas, e foco no “triângulo das bermudas” – MG, RJ e SP – onde é fundamental equilibrar os palanques e as disputas, observando e disputando os espaços com as forças de centro, inclusive com pactos de 1° ou 2°turno tendo como norte a centralidade da disputa nacional contra a extrema direita.

Também faz-se necessário fortalecer a articulação nos Estados do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, que outrora possuíam desempenhos excelentes, pois tínhamos governos municipais em diversas grandes cidades e até em capitais e nos governos de estado, mas que sofreram declínio nos últimos anos e têm sido marcados por candidaturas petistas de perfil eleitoral com desempenho insuficiente para polarizar a disputa nacional, apesar da melhora do potencial com alianças que permanecem e têm importância estratégica elevada.

Enfim, será uma disputa acirrada, na qual os palanques estaduais fortes são fundamentais por não se tratar de uma eleição “solteira” e a TV aberta ser menos decisiva, pois perdeu espaço para as redes sociais e o clima das ruas.

Do ponto de vista programático, a disputa será de projetos para o país e fortemente marcada pela disputa ideológica e de valores, além de ter um componente de trato de linguagem e conteúdo popular dialogando com as periferias urbanas das grandes e médias cidades e com os rincões sertanejos desse imenso e diverso Brasil.

Temos um imenso e rico legado e uma carreta carregada de realizações para colocar na agenda de Reconstrução do país, que alimenta no povo o sonho da volta de Lula à Presidência, entretanto, na pauta da Transformação precisamos, além de focar na política de maiorias (mulheres jovens, negros) e atualizar as pautas com esses segmentos sociais majoritários e estratégicos, devemos dar conta da fome que avança assustadoramente, das mudanças no mundo do trabalho, com o avanço da uberização e informalidade, e, ainda, da força estruturadora da valorização do Salário Mínimo, o maior indexador da economia real na vida das pessoas.

Precisamos realçar a força e capilaridade do SUS, visto na pandemia, e o aprofundamento da imensa rede de ensino público, com a universalização do acesso e capilarização territorial do ensino superior e técnico-científico e o suporte ao ensino básico e fundamental desde o transporte, a valorização do professor à merenda escolar.

Também é fundamental ampliar os debates sobre a retomada da economia, a valorização dos bancos públicos e das empresas de ponta e os investimentos em infraestrutura, logística, diversificação da matriz energética, petróleo e gás, novas tecnologias, comunicação eletrônica e conectividade.

Outra pauta de importância primordial é a questão ambiental, que deve ancorar-se na sustentabilidade, na gestão equilibrada dos recursos naturais, na preservação dos biomas e no planejamento territorial do desenvolvimento, observando o imenso potencial agrícola, mineral e de proteína animal do país.

Jonas Paulo é coordenador do Núcleo de Acompanhamento de Políticas Públicas do Nordeste (NAPP-NE) da Fundação Perseu Abramo e foi Presidente do PT da Bahia.

sexta-feira, 2 de abril de 2021

Crônica incidental de uma entrevista espetacular

 

Com trilha sonora do paraibano Chico César, fã de Lula e vice-versa, Reinaldo Azevedo entrevistou o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva neste 1º de abril de 2021 na Rádio Bandnews FM de São Paulo, com transmissão simultânea na Bandnews TV e no YouTube, que, quando escrevo este post, registra mais de 1,6 milhão de visualizações, um verdadeiro fenômeno. De fato, a entrevista bateu recordes de audiência em todas as plataformas em que foi veiculada (veja aqui e aqui) e, segundo a insuspeita Revista Época, foi 18 vezes maior (!!) do que a live semanal do genocida (veja aqui). 

De terno e gravata, indumentária que fez questão de justificar como adequada para entrevistar um ex-presidente da República, o inventor do neologismo "petralha" e crítico acerbo do petismo, iniciou a live fazendo logo uma autocrítica sobre o seu posicionamento contra as cotas raciais, luta histórica do movimento negro brasileiro e política pública implementada pelos governos Lula e Dilma após um amplo (e duro) debate na sociedade brasileira e no Congresso Nacional. Disse Azevedo:

"Eu errei. Eu vou entrevistar o presidente Lula daqui a pouco. Eu errei em ser contra a política de cotas. E quando alguém erra tem que reconhecer. Errou, reconhece. Qual é o problema? É assim que se avança"

Para um bom entendedor, meia palavra basta.  O Tio Rei acenava a sua bandeira branca para Lula e deixava no ar uma exortação aos arrependidos de 2018 (a imensa maioria ainda enrustida), àqueles que - siderados pelo antipetismo incutido durante anos na cabeça do povo brasileiro pela mídia hegemônica e/ou enganados pelo lawfare da hoje desmoralizada Lava Jato e/ou engambelados pelas fake news da campanha eleitoral - contribuíram para que um psicopata alcançasse o mais alto poder da República. 

Ora, errou, reconhece. Qual é o problema? É assim que se avança. Concordo plenamente!

O primeiro tema da entrevista foi sobre a condenação sem provas e a prisão injusta de Lula, cuja verdade dos fatos foi restabelecida recentemente pelo STF com a decretação da parcialidade de Sérgio Moro, o juiz ladrão. Lula profetizara isso no livro que publicou antes de ser preso - A verdade vencerá - e no histórico depoimento a Sérgio Moro, quando o ex-presidente disse ao juiz que este estava "condenado a condená-lo", pois a mídia já o fizera. Conclusivo, Lula asseverou:

"Eu estou muito tranquilo, a Lava Jato saiu da minha vida".

Pura verdade. Como são pura verdade os dados apurados pelo DIEESE que Lula apresentou sobre os prejuízos que a malfadada Operação Lava Jato deu ao país, dados estes pronta e enfaticamente chancelados pelo entrevistador, inclusive citando outras fontes. Disse Lula:

"O Ministério Público fica tentando fazer pirotecnia com a sociedade brasileira dizendo que arrecadou 4 bilhões com a Petrobras. Eles deram um prejuízo ao país de 172 bilhões de reais que deixaram de ser investidos, 47 bilhões de impostos que deixaram de ser pagos, 20 bilhões sobre folha de pagamento e 85 bilhões de massa salarial. E o resultado disso tudo são 4 milhões e 400 mil trabalhadores que perderam emprego".

No momento em que se confessou "trotskista na infância" e liberal na maturidade, Azevedo trouxe o tema das relações entre o Estado e o Mercado, discussão muito importante. Depois de afirmar ser contra o "Estado empresarial" e a favor do "Estado indutor de desenvolvimento", Lula concluiu o debate formulando mais um dos seus impagáveis chistes:

"Ô Reinaldo, faz um favor pra mim. Tenta provocar um debate entre eu e o tal Mercado. Eu quero saber quem é esse tal de Mercado que dá tanto palpite. (...) Esse mercado, se tivesse juízo, ele ia na Aparecida do Norte pagar promessa para eu voltar."

Pausa para rir. Foi o que fez Reinaldo Azevedo, cujas feições iam revelando uma crescente empatia pelo entrevistado. Aliás, arrisco dizer - baseado nas repercussões da entrevista que me chegaram por mensagens, pelas inúmeras memes que inundaram as redes sociais e pelo que li na mídia alternativa - que foi exatamente este o sentimento geral entre os ouvintes e espectadores, mesmo aqueles que não são fãs incondicionais do ex-presidente: uma profunda empatia.

Ora, Lula fala a linguagem do povo com a segurança dos sábios, como o fez pautando a discussão sobre a pandemia, sem dúvida o seu grande foco. Nesse momento, falou o Estadista:

"O Bush [ex-presidente dos EUA], eu e o Hu Jintao [ex-presidente da China] criamos o G20 para tentar salvar a economia. Por que os líderes dos países não se reúnem agora para discutir Covid-19? Por que não transformam a vacina em um Bem da Humanidade para todo cidadão ter direito à vacina? Então, o que está faltando é dirigente para tomar decisão."

Alguém discorda disso? E, certamente, não haverá de discordar do seu recado ao genocida:

"Eu espero que o Bolsonaro esteja assistindo nosso programa, pro Bolsonaro saber que não tem jeito esse país se não tiver um salário emergencial de 600 reais até terminar essa pandemia. E que essa pandemia só vai terminar quando tiver vacina pra todo mundo. Então, deixa de ser ignorante, presidente, pare de brigar com a ciência."

Não satisfeito com esse gancho no fígado do psicopata, Lula desferiu-lhe um cruzado na ponta do queixo:

"Lamentavelmente, a gente tem um presidente que não consegue falar com nenhum presidente. Jogou todas as fichas em cima do Trump. E esse cara, ninguém quer conversar com ele. E ele se fez assim.

Nós estamos vivendo um genocídio, não um genocídio de Estado como foi contra os negros e os indígenas, porque um genocídio praticado sob responsabilidade de um único homem.

Bolsonaro, quando é que você vai assumir a responsabilidade e parar de brincar de governar esse país? Pelo amor de Deus, aceita o conselho da Ciência pra cuidar do Coronavírus. Fecha a boca, Bolsonaro! Da mesma forma que você não sabe falar sobre Economia, não sabe sobre Saúde, então deixa o seu ministro da Saúde falar, deixa o pessoal do SUS falar, deixa os governadores e os prefeitos falarem."

Logo em seguida, ambos se chamaram de "companheiros". Azevedo com um largo sorriso no rosto. Como milhões de brasileiros e brasileiras que acompanharam a entrevista, todos esperançosos por dias melhores.