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quinta-feira, 5 de janeiro de 2023

Paraíba: trezentos anos de história camponesa

 

Caro leitor, cara leitora. Hoje dou início à postagem de excertos de textos acadêmicos publicados e também de textos inéditos que produzi nos últimos anos sobre o campesinato, trabalhadores e trabalhadoras rurais, comunidades tradicionais, o Semiárido, a Paraíba e as políticas públicas desenvolvidas para esses povos e territórios. É uma maneira de dar a minha contribuição para a popularização do debate científico. As notas são apenas para referências bibliográficas obrigatórias e a leitura delas é opcional.

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A campesinização [1] do espaço agrário paraibano começou no limiar do século XVIII, como de resto em todo o Nordeste oriental [2], a partir de três vertentes relacionadas à dinâmica da agroindústria açucareira, “nervo e substância” [3] da economia do Brasil colonial.

Em primeiro lugar, no início do século XVIII verifica-se uma queda vertiginosa dos preços internacionais do açúcar em função da concorrência do produto antilhano, o que compeliu os senhores de engenho a aprofundarem a sua recalcitrância em produzir qualquer outra coisa que não fosse o açúcar e se fixarem exclusivamente na produção dessa commodity. Em decorrência disso, observa-se “a constituição de comunidades de cultivadores pobres e livres” [4] nos rebordos das florestas virgens da Zona da Mata, através de um “processo de conversão” [5] de homens e mulheres pobres em cultivadores de gêneros de subsistência, especialmente a mandioca, base da alimentação da população escrava e livre, bem como das tripulações das muitas frotas portuguesas que na colônia aportavam.

Em meados do século XVIII, fontes coevas registravam “uma grande expansão – espacial e numérica – desse tipo de unidades produtoras” na Zona da Mata paraibana [6], mas a pressão fundiária sobre as melhores terras agricultáveis da Paraíba levaria à expulsão da maioria das comunidades camponesas pelo Estado colonial em favor dos interesses dos grandes proprietários, fixando-se elas, então, no Agreste, onde desenvolveriam uma “agricultura de subsistência complementada pelo criatório voltado para o autoconsumo” [7].

Em segundo lugar, e pela mesma razão, premia a ampliação e priorização econômica da plantation, o que levou a administração régia a proibir a criação de gado na zona canavieira em 1701, empurrando essa atividade para a extensa hinterlândia semiárida paraibana, até então inexplorada, onde se desenvolveria outro segmento do campesinato paraibano, formado por escravos e “pobres livres” que acompanharam os criadores de gado e pelos índios que sobreviveram à política de extermínio promovido pela Coroa Portuguesa [8] como suporte à chamada “frente de expansão pecuária” [9].

Escravos forros, pobres livres e índios “pacificados” seriam empregados como vaqueiros e, com suas famílias, desenvolveriam a pequena produção de alimentos na órbita das fazendas de gado no Sertão e Cariri. Alguns deles tornar-se-iam pequenos proprietários, pois, como apontou Capistrano de Abreu, “depois de quatro ou cinco anos de serviço, começava o vaqueiro a ser pago; de quatro crias cabia-lhe uma; podia-se assim fundar fazenda por sua conta” [10], mas a imensa maioria deles sobreviveria como arrendatários, parceiros, meeiros, “jornaleiros” ou, no limite, mendigando nas vilas e cidades que iam surgindo naquelas vastidões incultas.

Finalmente, mas não menos importante, no mesmo período processa-se a formação de um “protocampesinato negro” nas “brechas” do sistema escravista da agroindústria canavieira nordestina [11], seja pela concessão de lotes aos escravos destinados à produção de gêneros para a sua própria subsistência [12], parcelas essas não raro  passíveis de transmissão a descendentes ou confrades [13], redundando em “uma frequência progressivamente maior de núcleos familiares estáveis” [14], seja pelas comunidades quilombolas, cuja história das origens na Paraíba ainda precisa ser registrada [15], mas que, hoje, resistem em 36 assentamentos espalhados por todo o estado [16].

Em 300 anos de história camponesa, o estado da Paraíba experimentou vários processos de descampesinização de seus espaços agrários, sempre movidos, com maior ou menor violência, pelos interesses econômicos das elites mandatárias e dos grandes proprietários rurais, mas também vivenciou diversos processos de recampesinização, fruto de transições produtivas não conflitantes com aqueles interesses, mas conquistados e mantidos pela resiliência de camponeses e camponesas.

Por exemplo, na Zona da Mata, que apresenta os melhores solos e o regime pluviométrico mais favorável da Paraíba e, por isso mesmo, onde até hoje dominam os grandes plantadores de cana-de-açúcar – principal produto agrícola do estado e responsável por cerca de 35% do valor total da produção agropecuária paraibana, incluindo-se a agroindústria [17] – a pequena propriedade camponesa tem o seu lugar, destacando-se como a maior produtora de abacaxi e mandioca [18], as lavouras temporárias mais rentáveis do estado depois da cana-de-açúcar, também majoritariamente cultivadas nesse espaço agrário, entre outras culturas alimentares.

Por outro lado, nas mesorregiões do Agreste, Borborema e Sertão – onde a cotonicultura prosperou a partir do final do século XVIII e por todo o século XIX – estabeleceu-se “o tripé da produção semiárida, gado-algodão-culturas alimentares” [19], processo que favoreceu a consolidação da pequena propriedade camponesa surgida no entorno das grandes fazendas de gado em virtude da “expansão dos sistemas de parceria e arrendamento, formas de trabalho características da região” [20] e que levaria ao seu predomínio atual nesses espaços agrários, mesmo após a crise que se abateu sobre a cultura do algodão nas décadas de 1980 e 1990 e a consequente expulsão de muitos camponeses com o fim do “sistema de morada” [21].

Entrementes, a partir do final dos anos 1950, após séculos de exclusão socioeconômica e submissão política forçada pelas oligarquias dominantes, o campesinato paraibano começa a se organizar politicamente nas Ligas Camponesas que logo seriam esmagadas pela ditadura militar e seus acólitos [22]. Mas, com o processo de “abertura política” iniciado em meados dos anos 1970, camponeses e camponesas da Paraíba passam a protagonizar processos de organização social, política e produtiva por meio da articulação de movimentos sociais, sindicatos rurais, coletivos, associações e cooperativas de produtores familiares, tendo como aliados parceiros institucionais como ONGs, a sociedade civil organizada, organismos de cooperação internacional e as universidades públicas espalhadas pelo estado. 

Contudo, esse processo não foi pacífico, mas resultado de uma luta heróica. João Pedro Teixeira, Nego Fuba e Margarida Maria Alves são mártires dessa luta.

Entendemos que a resiliência camponesa na Paraíba deveu-se, fundamentalmente, à reconfiguração organizativa desse campesinato no início dos anos 1980 sob os influxos do “novo sindicalismo”, aos aliados que ele foi capaz de angariar a partir de então, aos processos de conversão produtiva construídos nos quadros dessa relação – notadamente a “transição agroecológica” [23] – e às políticas públicas que potencializaram e deram sustentabilidade ao seu empoderamento econômico, social e político, cujos principais marcos são: (a) a universalização da aposentadoria rural no início dos anos 1990; (b) a criação  do Programa Nacional de  Apoio à Agricultura Familiar (PRONAF) em 1996; e (c) o conjunto de políticas e programas implementado pelos governos de Luís Inácio Lula da Silva (2003-2010) e Dilma Rousseff (2011-2016), quando o campesinato e suas organizações conquistaram um real protagonismo na pauta do Orçamento Geral da União e no diálogo com o Governo Federal.

Como sabemos, tudo isso foi desarticulado pelos governos Temer e Bolsonaro, mas os camponeses, as camponesas e suas organizações seguem resilientes na Paraíba e, agora, estão firmes e prontos para escrever um novo capítulo de sua História com Lula Presidente.



[1] PLOEG, J.D. van der. Camponeses e impérios alimentares: lutas por autonomia e sustentabilidade na era da globalização. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2008.

[2] PALACIOS, G. Campesinato e escravidão: uma proposta de periodização para a história dos cultivadores pobres livres no Nordeste Oriental do Brasil. C. 1700-1875. Dados – Revista de Ciências Sociais, 30 (3), 1987, p. 327.

[3] BRANDÃO, A.F., Diálogos das grandezas do Brasil. 3ª ed. (segundo o apógrafo de Leiden, org. por José Antônio Gonsalves de Mello). Recife: Massangana, 1997 [1618], p. 86.

[4] PALACIOS, op. cit., p. 329.

[5] Idem, p. 330.

[6] Idem, p. 333.

[7] MOREIRA, E.; TARGINO, I. Capítulos de geografia agrária da Paraíba. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 1997, p. 80.

[8] PUNTONI, P. A guerra dos bárbaros: povos indígenas e a colonização do sertão Nordeste do Brasil, 1650-1720. São Paulo: Hucitec; EDUSP; Fapesp, 2002, p. 17.

[9] FURTADO, C. Formação econômica do Brasil. 10ª ed. São Paulo: Editora Nacional, 1970, p. 59.

[10] ABREU, J.C. Capítulos de história colonial (1500-1800). 7ª ed. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1988 [1907], p. 170.

[11] CARDOSO, C. S. Escravo ou camponês? O protocampesinato negro nas Américas. São Paulo: Brasiliense, 1987.

[12] Idem, p. 95.

[13] Idem, p. 102.

[14] Idem, p. 113.

[15] FORTES, M.E.P.; LUCCHESI, F. Comunidades quilombolas na Paraíba. In BANAL, A.; FORTES, M.E.P. (orgs.), Quilombos da Paraíba: A realidade de hoje e os desafios para o futuro. João Pessoa: Imprell, 2013, p. 48.

[16] BANAL, A. A via crucis das comunidades quilombolas da Paraíba. In BANAL, A.; FORTES, M.E.P. (orgs.), Quilombos da Paraíba: A realidade de hoje e os desafios para o futuro. João Pessoa: Imprell, 2013, p. 36.

[17] CANIELLO, M. (org). A Paraíba vista pelo NEPP-PB. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2023, no prelo.

[18] Idem.

[19] MOREIRA; TARGINO, op. cit., p. 79.

[20] Idem, p. 78.

[21] WANDERLEY, M.N.B. O campesinato brasileiro: uma história de resistência. Revista de Economia e Sociologia Rural, 52 (4), Supl. 1, 2014, p. 27.

[22] CARNEIRO, A; CIOCCARI, M. Retrato da repressão política no campo – Brasil, 1962-1985: camponeses torturados, mortos e desaparecidos. Brasília: MDA, 2011, p. 27.

[23] CAPORAL, F.; COSTABEBER, J.A. Agroecologia e desenvolvimento rural sustentável: perspectivas para uma nova extensão rural. Agroecologia e Desenvolvimento Rural Sustentável, Porto Alegre, v.1, n.1, 2000.