sexta-feira, 6 de janeiro de 2023

Desenvolvimento Agrário abandona a Política Territorial. E isso é um erro.


A falta de continuidade das políticas públicas no Brasil é uma chaga viva na nossa história republicana. Afora as rupturas provocadas pelos golpes de Estado e as alterações próprias da alternância democrática nos poderes constituídos, verificam-se também mudanças de rumos na sucessão de governos de um mesmo partido ou campo político.

É o que está acontecendo na configuração do novo Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDAF), ele próprio um órgão marcado pela descontinuidade, pois, em 38 anos desde a sua criação, o ministério teve apenas 19 anos em efetivo funcionamento. Refiro-me ao abandono da Política Territorial como elemento agregador dos programas e ações do MDAF, como já apontamos quando festejamos a recriação do ministério. Agora quero explicar porque faço essa crítica.

A chamada "estratégia territorial de desenvolvimento rural" - uma abordagem formulada no debate acadêmico nos anos 1980-1990 e praticada por governos europeus desde então - foi adotada pelo MDA em 2003, no início do primeiro Governo Lula, com a criação da Secretaria de Desenvolvimento Territorial (SDT) na estrutura do ministério, com três objetivos: (a) superar o "setorialismo" das políticas públicas para os povos do campo, sabidamente deletéria conforme a literatura especializada; (b) otimizar a aplicação de recursos humanos e financeiros na implementação de políticas públicas no meio rural em face do paradoxo entre a centralização do Estado e a fragmentação municipalista no pacto federativo brasileiro; e (c) fomentar a participação social no planejamento, implementação e monitoramento das políticas públicas desenvolvidas nos territórios rurais.

Esses objetivos foram colocados em prática por meio do Programa Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável dos Territórios Rurais (PRONAT), que ficaria conhecido como Programa Territórios da Cidadania a partir do segundo Governo Lula. Esse processo foi acompanhado, assessorado e avaliado por centenas de grupos de pesquisa de universidades públicas brasileiras selecionados em dois Editais públicos do CNPq: o Projeto Células de Acompanhamento e Informação (CAI) e o Projeto Núcleos de Extensão em Desenvolvimento Territorial (Projeto NEDETs), que produziram uma vasta produção acadêmica sobre a experiência.

Eu dirigi a CAI Borborema, o NEDET Borborema, Curimataú e Seridó Paraibano e fiz parte da Comissão de Coordenadores que assessorou a SDT durante o desenvolvimento dos dois projetos. Em virtude disso, publiquei vários trabalhos sobre a experiência, apontando limitações, avanços e potencialidades (aquiaqui, aqui, aqui e aqui), mas quero agora ressaltar os resultados de uma pesquisa de opinião que realizamos no primeiro semestre de 2016 com 3.918 integrantes dos colegiados de 146 Territórios Rurais (TRs) localizados em todas as Unidades da Federação do Brasil (sobre a metodologia da pesquisa, leia aqui).

Como uma tendência geral da pesquisa, a dimensão melhor avaliada pelos respondentes foi a que se relaciona aos resultados concretos da política territorial que, grosso modo, podem ser resumidos assim:

  • Os investimentos públicos nos ativos territoriais foram bem sucedidos, o que pode ser verificado, pelo desempenho do PROINF, que financiou 8.141 projetos produtivos nas diversas regiões do país, sendo que o maior volume de recursos foi destinado ao Nordeste, um montante de R$ 755 milhões (38% do total), ou R$ 1,1 bilhão em valores atualizados, onde foram construídos 361 centros de comercialização, 94 agroindústrias, 69 casas de mel, 58 Escolas Famílias Agrícolas, 45 abatedouros, 35 casas de farinha, entre outros inúmeros projetos.
  • Os colegiados territoriais promoveram a ampliação da participação sociedade civil na gestão de políticas públicas e levaram ao empoderamento dos atores sociais e suas organizações, pois estes têm conseguido assumir posições de liderança político-administrativa, inclusive por meio eleitoral nos seus territórios de origem.
  • Várias políticas públicas foram "territorializadas", como PAA e o SUASA, por  exemplo, o que levou à otimização do seu desempenho.
  • A experiência fomentou a aprendizagem dos atores sociais, pois estes reconhecem ganhos no conhecimento das dinâmicas territoriais, dos desafios do desenvolvimento e das políticas públicas.
  • A estratégia territorial levou ao melhoramento dos laços sociais dos atores envolvidos - aliás, o indicador melhor avaliado na pesquisa - indicando que a dinâmica territorial favoreceu a cooperação entre as pessoas, alimentou o seu sentimento de pertença (identidade) e fortaleceu o capital social, base do desenvolvimento territorial. 

Isso significa que, embora envolta em dificuldades, paradoxos e dilemas, a política territorial implementada como estratégia de desenvolvimento rural entre os anos de 2003 e 2016 no Brasil foi bem sucedida em seus objetivos últimos.

Daí eu pergunto: por que abandoná-la?

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