Um dos resultados mais impressionantes do Censo 2010, revelado pela sinopse recentemente divulgada pelo IBGE, não teve a menor repercussão na mídia, pois os jornais, as revistas, os canais de televisão e até os portais da internet limitaram-se a reproduzir, em análises rasas e repletas de “infográficos”, o release do IBGE, ressaltando a redução na taxa média de crescimento populacional anual, o “envelhecimento” da população, algumas curiosidades regionais sobre a razão de sexos, o problema do analfabetismo (que já analisamos aqui) e a surrada tese do inexorável processo de urbanização do país.
De duas, uma: ou suas enormes equipes de “especialistas” não tiveram a paciência de investigar um pouquinho mais as informações disponibilizadas pelo IBGE, ou a omissão sobre a composição étnica da população brasileira revelada pelo último censo está a denunciar, mais uma vez, a nossa hipócrita ideologia racial.
De fato, pela primeira vez na história deste país, as estatísticas oficiais revelam o que muitos antropólogos, sociólogos e movimentos sociais vêm afirmando há anos: o Brasil não é um país de população majoritariamente branca, pois 96.795.294 pessoas se declararam “pretas” ou “pardas”, totalizando 50,74% do total, ao passo que 91.051.646 se disseram “brancas” (47,73%). A contagem apontou também 2.084.288 “amarelos”, isto é, chineses, japoneses, coreanos etc. (1,09%) e uma população indígena de 817.963 pessoas (0,43%).
Quando comparamos esses resultados com os dados do censo anterior e consideramos a taxa de crescimento populacional do Brasil na década, concluímos que, anteriormente, os dados oficiais revelavam uma composição racial da população brasileira longe da realidade, com uma forte subestimação das populações não brancas.
Ora, por um lado, houve uma drástica redução de cor e raça “ignoradas”, cujo total caiu de 1.132.990 em 2000 (0,67%) para irrelevantes 6.608 em 2010 (0,003%). Por outro lado, observou-se uma discreta diminuição da população branca (-0,27%), que se contrasta com um extraordinário aumento da população amarela (173,68%), um grande aumento das populações preta (37,55%) e parda (25,96%) e um aumento proporcional da população indígena (11,42%).
Assim, afora o crescimento da população indígena, cujo total permaneceu representando algo em torno de 0,43% da população do país, todos os outros coeficientes apurados parecem ser “pontos fora da curva”, a se considerar o aumento de 12,34% da população brasileira na última década. Com efeito, sabendo-se que não houve nenhum “surto migratório” de orientais para o país, nada explica, a não ser a subestimação no censo anterior, que a população de raça amarela tenha aumentado quase quinze vezes mais do que a média nacional. Por outro lado, parece não haver uma explicação demográfica plausível para que a população negra tenha aumentado o triplo e a parda mais do que o dobro da média nacional, enquanto a população branca, que representa quase a metade do total, tenha diminuído na mesma década.
Cor/Raça | 2000 | 2010 | ||
Branca | 91.298.042 | 53,77% | 91.051.646 | 47,73% |
Preta | 10.554.336 | 6,22% | 14.517.961 | 7,61% |
Parda | 65.318.092 | 38,47% | 82.277.333 | 43,13% |
Amarela | 761.583 | 0,45% | 2.084.288 | 1,09% |
Indígena | 734.127 | 0,43% | 817.963 | 0,43% |
Ignorada | 1.132.990 | 0,67% | 6.608 | 0,003% |
TOTAL | 169.799.170 | 100% | 190.749.191 | 100% |
Há que se ressaltar que até o censo de 2000 a pergunta sobre a cor/raça só constava do questionário completo (que não é aplicado a todos os respondentes, mas apenas a uma amostra de domicílios) e que no último censo todos os brasileiros responderam essa questão, mas não seria de se esperar tal discrepância entre a realidade apontada em 2000 e em 2010, uma vez que a base amostral do censo é bastante ampla. Isto é, se argumentarmos que tal diferença entre os resultados se deu em função da captação do universo de dados, não poderíamos confiar nas Pesquisas Nacionais por Amostragem de Domícilios (PNADs), realizadas pelo IBGE nos períodos intercensitários com base amostral menor.
Seja como for, além da confirmação estatística de uma verdade histórica há tempos reivindicada pelos movimentos sociais e alguns cientistas sociais brasileiros como Gilberto Freyre, Abdias do Nascimento e Roberto DaMatta, dentre outros, penso que podemos formular pelo menos uma conclusão importante acerca da composição étnica da população brasileira revelada pelo censo de 2010. Considerando-se que a definição de raça/cor é auto atribuída, é de se supor que tenha havido um fortalecimento da identidade das pessoas de cor no Brasil, levando-se em conta, por um lado, a vertiginosa queda da subdeclaração (raça/cor “ignorada”) e, por outro lado, o crescimento inusitado do número de pessoas que se autodeclaram “pretas”, “pardas” ou “amarelas”. Reforça essa suposição a redução, mais inusitada ainda, do número de pessoas que se dizem “brancas”.
Minha hipótese é que o fortalecimento identitário dos afrodescendentes e a consequente elevação da auto-estima da população negra brasileira estejam relacionados com as políticas afirmativas empreendidas pelo governo Lula e com o debate acerca delas na sociedade civil. Ponto para o movimento negro, tanto em virtude dessa conquista – digamos - moral, quanto pelo próprio fortalecimento de sua agenda, agora voltada oficialmente para a maioria do povo brasileiro.