Caro leitor, cara
leitora. Hoje dou início à postagem de excertos de textos acadêmicos publicados
e também de textos inéditos que produzi nos últimos anos sobre o campesinato,
trabalhadores e trabalhadoras rurais, comunidades tradicionais, o Semiárido, a
Paraíba e as políticas públicas desenvolvidas para esses povos e territórios. É
uma maneira de dar a minha contribuição para a popularização do debate científico.
As notas são apenas para referências bibliográficas obrigatórias e a leitura delas é opcional.
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A campesinização do
espaço agrário paraibano começou no limiar do século XVIII, como de resto em
todo o Nordeste oriental , a
partir de três vertentes relacionadas à dinâmica da agroindústria açucareira,
“nervo e substância” da
economia do Brasil colonial.
Em primeiro
lugar, no início do século XVIII verifica-se uma queda vertiginosa dos
preços internacionais do açúcar em função da concorrência do produto antilhano, o que
compeliu os senhores de engenho a aprofundarem a sua recalcitrância em produzir
qualquer outra coisa que não fosse o açúcar e se fixarem exclusivamente na
produção dessa commodity. Em decorrência disso, observa-se “a
constituição de comunidades de cultivadores pobres e livres” nos
rebordos das florestas virgens da Zona da Mata, através de um “processo de
conversão” de
homens e mulheres pobres em cultivadores de gêneros de subsistência,
especialmente a mandioca, base da alimentação da população escrava e livre, bem
como das tripulações das muitas frotas portuguesas que na colônia aportavam.
Em meados do século
XVIII, fontes coevas registravam “uma grande expansão – espacial e numérica –
desse tipo de unidades produtoras” na Zona da Mata paraibana ,
mas a pressão fundiária sobre as melhores terras agricultáveis da Paraíba
levaria à expulsão da maioria das comunidades camponesas pelo Estado colonial
em favor dos interesses dos grandes proprietários, fixando-se elas, então, no
Agreste, onde desenvolveriam uma “agricultura de subsistência complementada
pelo criatório voltado para o autoconsumo” .
Em segundo lugar, e
pela mesma razão, premia a ampliação e priorização econômica da plantation,
o que levou a administração régia a proibir a criação de gado na zona
canavieira em 1701, empurrando essa atividade para a extensa hinterlândia
semiárida paraibana, até então inexplorada, onde se desenvolveria outro
segmento do campesinato paraibano, formado por escravos e “pobres livres” que
acompanharam os criadores de gado e pelos índios que sobreviveram à política de
extermínio promovido pela Coroa Portuguesa como
suporte à chamada “frente de expansão pecuária” .
Escravos forros,
pobres livres e índios “pacificados” seriam empregados como vaqueiros e, com
suas famílias, desenvolveriam a pequena produção de alimentos na órbita das
fazendas de gado no Sertão e Cariri. Alguns deles tornar-se-iam pequenos
proprietários, pois, como apontou Capistrano de Abreu, “depois de quatro ou
cinco anos de serviço, começava o vaqueiro a ser pago; de quatro crias
cabia-lhe uma; podia-se assim fundar fazenda por sua conta” ,
mas a imensa maioria deles sobreviveria como arrendatários, parceiros, meeiros,
“jornaleiros” ou, no limite, mendigando nas vilas e cidades que iam surgindo naquelas
vastidões incultas.
Finalmente, mas não
menos importante, no mesmo período processa-se a formação de um
“protocampesinato negro” nas “brechas” do sistema escravista da agroindústria
canavieira nordestina ,
seja pela concessão de lotes aos escravos destinados à produção de gêneros para
a sua própria subsistência ,
parcelas essas não raro passíveis de transmissão a descendentes ou
confrades ,
redundando em “uma frequência progressivamente maior de núcleos familiares
estáveis” ,
seja pelas comunidades quilombolas, cuja história das origens na Paraíba ainda
precisa ser registrada ,
mas que, hoje, resistem em 36 assentamentos espalhados por todo o estado .
Em 300 anos de
história camponesa, o estado da Paraíba experimentou vários processos de descampesinização de seus espaços
agrários, sempre movidos, com maior ou menor violência, pelos interesses
econômicos das elites mandatárias e dos grandes proprietários rurais, mas
também vivenciou diversos processos de recampesinização,
fruto de transições produtivas não conflitantes com aqueles interesses, mas
conquistados e mantidos pela resiliência de camponeses e camponesas.
Por exemplo, na Zona
da Mata, que apresenta os melhores solos e o regime pluviométrico mais
favorável da Paraíba e, por isso mesmo, onde até hoje dominam os grandes
plantadores de cana-de-açúcar – principal produto agrícola do estado e
responsável por cerca de 35% do valor total da produção agropecuária paraibana,
incluindo-se a agroindústria –
a pequena propriedade camponesa tem o seu lugar, destacando-se como a maior
produtora de abacaxi e mandioca ,
as lavouras temporárias mais rentáveis do estado depois da cana-de-açúcar, também
majoritariamente cultivadas nesse espaço agrário, entre outras culturas
alimentares.
Por outro lado, nas
mesorregiões do Agreste, Borborema e Sertão – onde a cotonicultura prosperou a
partir do final do século XVIII e por todo o século XIX – estabeleceu-se “o
tripé da produção semiárida, gado-algodão-culturas alimentares” ,
processo que favoreceu a consolidação da pequena propriedade camponesa surgida
no entorno das grandes fazendas de gado em virtude da “expansão dos sistemas de
parceria e arrendamento, formas de trabalho características da região” e
que levaria ao seu predomínio atual nesses espaços agrários, mesmo após a crise
que se abateu sobre a cultura do algodão nas décadas de 1980 e 1990 e a consequente
expulsão de muitos camponeses com o fim do “sistema de morada” .
Entrementes, a partir do final dos anos
1950, após séculos de exclusão socioeconômica e submissão política forçada
pelas oligarquias dominantes, o campesinato paraibano começa a se organizar
politicamente nas Ligas Camponesas que logo seriam esmagadas pela ditadura
militar e seus acólitos . Mas, com o processo de
“abertura política” iniciado em meados dos anos 1970, camponeses e camponesas
da Paraíba passam a protagonizar processos de organização social, política e
produtiva por meio da articulação de movimentos sociais, sindicatos rurais,
coletivos, associações e cooperativas de produtores familiares, tendo como
aliados parceiros institucionais como ONGs, a sociedade civil organizada,
organismos de cooperação internacional e as universidades públicas espalhadas
pelo estado.
Contudo, esse processo não foi pacífico, mas resultado de uma luta heróica. João Pedro Teixeira, Nego Fuba e Margarida Maria Alves são mártires dessa luta.
Entendemos que a
resiliência camponesa na Paraíba deveu-se, fundamentalmente, à reconfiguração
organizativa desse campesinato no início dos anos 1980 sob os influxos do “novo
sindicalismo”, aos aliados que ele foi capaz de angariar a partir de então, aos
processos de conversão produtiva construídos nos quadros dessa relação –
notadamente a “transição agroecológica” –
e às políticas públicas que potencializaram e deram sustentabilidade ao seu empoderamento econômico, social e
político, cujos principais marcos são: (a) a universalização da aposentadoria
rural no início dos anos 1990; (b) a criação do Programa Nacional
de Apoio à Agricultura Familiar (PRONAF) em 1996; e (c) o conjunto
de políticas e programas implementado pelos governos de Luís Inácio Lula da
Silva (2003-2010) e Dilma Rousseff (2011-2016), quando o campesinato e suas
organizações conquistaram um real protagonismo na pauta do Orçamento Geral da
União e no diálogo com o Governo Federal.
Como sabemos, tudo
isso foi desarticulado pelos governos Temer e Bolsonaro, mas os camponeses, as camponesas
e suas organizações seguem resilientes na Paraíba e, agora, estão firmes e
prontos para escrever um novo capítulo de sua História com Lula Presidente.