Não é preciso ser um cientista social para saber que a desigualdade é o principal problema nacional, pois é notório o fato de que a distribuição de renda no Brasil é uma das mais iníquas do mundo. Com efeito, embora o IPEA tenha constatado que nos últimos anos a desigualdade de renda tenha declinado constante e substancialmente no país, sabe-se que atualmente a renda apropriada pelo 1% mais rico da população é igual à renda apropriada pelos 50% mais pobres e que o Brasil tem uma concentração de renda maior do que a observada em 95% dos países para os quais se tem dados (Barros; Foguel; Ulyssea, 2006: 15 e 22).
O que torna ainda mais perversa essa realidade é que além da brutal desigualdade econômica, há uma flagrante falta de eqüidade entre os cidadãos no acesso às salvaguardas que o Estado deveria outorgar a todos, pois a sociedade brasileira está emoldurada por um sistema hierárquico de relações sociais que define condições diferenciais de cidadania de acordo com a posição do indivíduo num panorama social dividido entre “superiores” e “inferiores” (Cf. DaMatta, 1983, 1987 e 1993). De fato, a “vertente relacional e hierarquizante de nossa constelação de valores” (DaMatta, 1987: 60) subsume o “caráter nivelador e igualitário” da cidadania (Cf. DaMatta, 1987: 76), pois quem trava relações com as instituições do Estado não são os indivíduos, formalmente iguais entre si, mas as pessoas, carregadas de atributos adquiridos pela sua posição econômica e pelo seu status.
Portanto, a desigualdade social no Brasil tem uma dupla face: por um lado, existe uma diferença econômica aguda entre a minoria abastada e a massa despossuída; por outro lado, há um verdadeiro abismo civil entre a elite e o povo.
Essa configuração dúplice tem uma profundidade histórica pronunciada, pois se podemos buscar as raízes da desigualdade econômica na ordem escravocrata da economia colonial (Cf. Prado Jr., 1989), a desigualdade civil é ainda mais antiga, pois se funda na própria “teia de relações senhoriais” (Genovese, 1979: 82), um dos principais traços do ethos lusitano desde a precoce afirmação nacional portuguesa (Cf. Caniello, 2001: 51). Considerando-se, por exemplo, a coexistência no Brasil colonial dos “escravos de ganho” com “indivíduos livres que eram sujeitos a coerção, sofriam discriminação, recebiam pouquíssima remuneração por seu trabalho e eram tolhidos pelo costume e pela prática” (Schwartz, 1995: 214), havemos de concordar que não foi o sistema de trabalho que deu origem ao nosso principal problema social, mas que ele é derivado de um padrão ético assentado numa clivagem estrutural entre os cidadãos, que, aliás, justificava o modelo de exploração do trabalho. Neste sentido, a perene e aguda desigualdade social no Brasil não é, tão somente, uma “herança da escravidão” como propugnam muitos analistas da nossa cena social, mas resulta de uma ordem ética que é anterior ao sistema escravocrata e que sobreviveu, praticamente incólume, à sua superação. Assim, consideramos que o estatuto da desigualdade civil é o elemento estrutural crítico do “legado cívico” (Cf. Putnam, 1996: 133) da sociedade brasileira, cuja “longa duração” (Cf. Braudel, 1958) a denuncia como a causa mais profunda da nossa crônica desigualdade socioeconômica.
De fato, desde a publicação em 1603 das Ordenações filipinas, nosso primeiro Código Penal, definiu-se um dos aspectos mais persistentes da cidadania à brasileira, a impunidade dos poderosos articulada à flagelação dos despossuídos; aquilo que Roberto DaMatta resumiu com o seu estilo direto: “Se o criminoso é pobre ou ignorante, pau nele! Mas se é um letrado, um doutor ou tem família, é tratado com todas as finezas a que uma pessoa tem direito” (DaMatta, 1996: 62). Hoje podemos observar que um dos signos mais expressivos desse aspecto perene, a desigualdade civil entre a elite e o povo, é uma relíquia do código filipino. A chamada “prisão especial” – “um traço do nosso sistema legal que dá a certas categorias de pessoas (...) o direito a um tratamento privilegiado por parte da Justiça, independente do crime cometido” (DaMatta, 1996: 208) – tem a sua origem nas disposições filipinas acerca dos procedimentos processuais, como fica dito no artigo 120:
“Mandamos que os fidalgos de solar ou assentados em nossos livros, e os nossos desembargadores, e os doutores em leis ou em cânones, ou em medicina, feitos em estudo universal por exame, e os cavaleiros fidalgos ou confirmados por nós, e os cavaleiros das Ordens Militares de Cristo, Santiago e Aviz, e os escrivães de nossa Fazenda e Câmara, e mulheres dos sobreditos, enquanto com eles forem casadas ou estiverem viúvas honestas, não sejam presos em ferros, senão por feitos em que mereçam morrer morte natural ou civil. E pelos outros, em que não caibam as ditas penas de morte, serão presos sobre suas homenagens, as quais devem fazer aos juízes que os prenderem, ou mandarem prender. E por eles lhes serão tomadas, e lhes darão por prisão o castelo da vila ou sua casa, ou a mesma cidade, vila ou lugar, segundo for a qualidade do caso.”
Podemos dizer, portanto, que a prática jurídica no Brasil colonial evidencia os principais paradoxos que ainda hoje caracterizam cidadania à brasileira, pois eles veiculam as influências das diferenças entre os cidadãos postas pela hierarquização do sistema social, pelos seus abismos econômicos e civis e pela interpolação entre o público e o privado na conduta das pessoas e no funcionamento das instituições.
O que torna essa operação mais abjeta é a brutal distorção da pirâmide social, em cuja base desproporcional está alocada a imensa maioria da população, enquanto o afilado cume é ocupado por uma reduzidíssima elite. É bem verdade que a draconiana letra da lei foi, pelo menos em parte, revogada, mas os seus preceitos permanecem a pautar, nos desvãos das nossas arenas institucionais, o exercício da justiça no Brasil que, com suas extravagâncias recursais, mostra-se tão favorável aos abonados pela fortuna e tão reticente quanto à impunidade dos poderosos e que, com seus foros e prisões especiais para a elite e os seus calabouços infectos para o povo, mostra sua face mais perversa: a sustentação do estatuto da desigualdade civil em pleno Século XXI.
Assim, a superação do nosso principal problema social - a desigualdade entre os cidadãos - não depende apenas da superação do abismo econômico entre as classes sociais, mas se liga umbilicalmente à necessidade de uma transformação profunda, ampla e radical no ordenamento da Justiça no Brasil.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARROS, Ricardo Paes de; FOGUEL, Miguel Nathan; ULYSSEA, Gabriel (orgs.) (2006). Desigualdade de renda no Brasil: uma análise da queda recente. Brasília, IPEA, 2 vols. (http://www.ipea.gov.br/005/00502001.jsp?ttCD_CHAVE=295).
BRAUDEL, Fernand (1958). “A longa duração”, História e Ciências Sociais. Trad. Carlos Braga e Inácia Canelas. 2ª ed. Lisboa, Editorial Presença, 1976 (Biblioteca de Ciências Humanas).
CANIELLO, Márcio (2001) O Ethos Brasílico: sociologia histórica da formação nacional – 1500-1654. Tese de Doutoramento. Recife, PPGS/UFPE. (http://docs.google.com/fileview?id=0BxO9UflhPvRFNjg1MzZkNDYtYjhhZi00ZjJkLTlhZDAtMTFiOWM3N2QzZGIx&hl=pt_BR)
DAMATTA, Roberto (1983). Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. 4ª ed. Rio de Janeiro, Zahar.
_____________ (1987). A casa & a rua: espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. Rio de Janeiro, Guanabara.
_____________ (1993). Conta de mentiroso: sete ensaios de antropologia brasileira. Rio de Janeiro, Rocco.
_____________ (1996). Torre de Babel: ensaios, crônicas, críticas, interpretações e fantasias. Rio de Janeiro, Rocco.
GENOVESE, Eugene D. (1979). O mundo dos senhores de escravos: dois ensaios de interpretação. Trad. Laís Falleiros. Rio de Janeiro, Paz & Terra (Pensamento crítico, v. 35).
PRADO JR., Caio (1942). Formação do Brasil Contemporâneo: Colônia. 21ª ed. São Paulo, Brasiliense, 1989.
PUTNAM, Robert D. (1996), Comunidade e Democracia: a experiência da Itália moderna. Trad. Luiz Alberto Monjardim. Rio de Janeiro, Editora Fundação Getúlio Vargas.
SCHWARTZ, Stuart B. (1995). Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial, 1550-1835. Trad. de Laura Teixeira Motta. São Paulo, Companhia das Letras; Brasília, CNPq.
Este texto é parte do artigo que será apresentado no Worshop sobre valores humanos promovido pelo PNUD (http://www.pnud.org.br/home/) em Brasília entre os dias 24 e 25/08. O evento se inscreve no programa de elaboração do próximo Relatório de Desenvolvimento Humano.