Nos últimos anos, desenvolve-se um importante debate no meio acadêmico brasileiro sobre a “ruralidade” do Brasil atual, uma vez que as estatísticas oficiais têm demonstrado, censo a censo, que houve um forte processo de urbanização do país na segunda metade do Século XX, pois a população rural brasileira despencou de 55%, em 1960, para apenas 15% em 2010, de acordo com o IBGE.
Embora os números sejam eloquentes e reflitam um processo demográfico real, uma importante corrente de cientistas sociais brasileiros os consideram superdimensionados, em função da matriz conceitual e política que os envolve. Em artigo que sumariza os argumentos dessa corrente crítica, a professora Maria de Nazareth Wanderley ressalta, fundamentalmente, que a definição do recorte rural/urbano é uma atribuição dos municípios, que têm interesse em superdimensionar a área urbana, uma vez que o Código Tributário Nacional (Lei nº 5.172/1966) estabelece que os impostos municipais são arrecadados na zona urbana e os federais nas áreas rurais. Assim, “a extensão exagerada das zonas urbanas é um artifício para o incremento das receitas locais” (Wanderley, 2009).
Acrescenta Wanderley que dois dispositivos jurídicos favorecem essa manobra, ambos especificados no artigo 32 do CTN. O parágrafo 1º “associa a condição urbana à existência de melhoramentos, mas admite que para ser considerada urbana, basta a uma zona dispor de pelo menos 2 (dois) dos incisos seguintes, construídos ou mantidos pelo Poder Público: I - meio-fio ou calçamento, com canalização de águas pluviais; II – abastecimento de água; III – sistemas de esgotos sanitários; IV – rede de iluminação pública, com ou sem posteamento para distribuição domiciliar; V – escola primária ou posto de saúde a uma distância máxima de 3 (três) quilômetros do imóvel considerado”. Por outro lado, o parágrafo 2º flexibiliza ainda mais a definição ao prever que “a lei municipal pode considerar urbanas as áreas urbanizáveis, ou de expansão urbana, constantes de loteamentos aprovados pelos órgãos competentes, destinados à habitação, à indústria ou ao comércio, mesmo que localizados fora das zonas definidas nos termos do parágrafo anterior” (Wanderley, 2009).
Esses critérios definidos há 45 anos no CTN estão, evidentemente, desatualizados, não refletem a realidade atual do campo no Brasil e, portanto, as legislações municipais que fundamentam a matriz estatística do IBGE alimentam, nas palavras de José Eli da Veiga, a “ficção oficial” de que o Brasil é mais urbano do que realmente é (Veiga, 2002). De fato, segundo o Censo de 2010, 70% dos municípios brasileiros têm até 20.000 habitantes: em que medida podemos realmente considerá-los “urbanos”?
Neste post quero expressar um argumento em favor das teses esposadas por Veiga e Wanderley sobre a ruralidade do Brasil. E aqui não falarei como o economista ou a socióloga, mas como antropólogo que sou, procurarei demonstrar que as festas juninas, um verdadeiro patrimônio histórico da cultura brasileira, explicitam o quão rural é nosso “espírito nacional” e, portanto, a sociedade brasileira. Sigo aqui uma premissa básica da ciência que procuro professar e que me foi incutida pelo meu Mestre, Roberto DaMatta: é através de suas festas que um povo expressa sua real identidade, isto é, sua essência existencial, recôndita no fundo da alma por mecanismos racionais que muitas vezes a ocultam por razões diversas, inclusive a vergonha.
As festas nacionais, como o carnaval magistralmente interpretado por DaMatta no livro Carnavais, malandros e heróis (1978), são “dramas metafóricos” cíclicos, realizados fora do cotidiano das pessoas, num período demarcado, em que elas podem “se soltar”, vivenciando por algumas horas ou dias facetas de sua personalidade social – ou do que denomino, apoiando-me em Hegel, de “espírito nacional” (Caniello, 2001) - que não explicitam no dia-a-dia, porque ali desempenham outros papéis, relacionados com o mundo do trabalho e com os imperativos do status social e econômico que dominam e circunscrevem o indivíduo na sociedade ocidental.
Assim ocorre com nossa identidade rural, que começou a ser “deteriorada” simbolicamente na medida em que os valores do industrialismo e da urbanização passaram a dominar ideologia de progresso que o Brasil passou a adotar a partir da Revolução de 30. A triste imagem do Jeca Tatu, estereótipo do “caipira”, “matuto” ou “tabaréu” oferecido à cultura brasileira por Monteiro Lobato em 1918 com a publicação de Urupês, constitui-se num arquétipo negativo da ruralidade, hoje impresso fundamente na alma nacional. Assim, renegamos nossa ruralidade como se ela fosse um símbolo do atraso que conseguimos superar com o “progresso” resultante da industrialização e da urbanização, não importa a que custo, nesse processo batizado, com rara felicidade, por Alberto Passos Guimarães, como “modernização conservadora”.
Mas, nas festas juninas, rurais por sua natureza intrínseca, esquecemos isso tudo e nos transmutamos. Não há criança ou adulto no Brasil - a exceção, evidentemente, dos próprios habitantes da zona rural - que não tenha pelo menos uma vez na vida se fantasiado de “caipira”, como se diz no centro-sul do país, ou de “matuto”, como se diz no Norte e no Nordeste, para participar de um evento alegre, luminoso e extremamente gregário, que nossa memória não esquece jamais.
Os dias de Santo Antônio (13/06), São João (24/06) e São Pedro (29/06) são festejados efusivamente nos quatro cantos do país, da mesma maneira nas cidades e no campo, com o cardápio típico, a fogueira, as bandeirinhas, os balões, os fogos, o mastro, a quermesse, a quadrilha e o boi... É bem verdade que as festas juninas apresentam ricas variações regionais que expressam a dimensão continental do país e a formação sincrética do povo brasileiro, mas sua “regularidade sociológica estrutural”, como diria Lévi-Strauss, as fixam como um verdadeiro ritual nacional. Aliás, arrisco-me a dizer, cutucando filialmente o Mestre DaMatta, que nós, brasileiros, somos mais juninos do que carnavalescos - portanto mais rurais do que urbanos - pois enquanto o carnaval é um evento realizado apenas nas cidades, as festas juninas, rurais em sua natureza, são realizadas, indiscriminadamente, nas cidades e no campo, em todas as regiões do país.
As festas juninas são a principal festividade dos habitantes da zona rural do Brasil e um “drama metafórico da ruralidade” para os brasileiros das cidades. Nós as realizamos todos os anos para lembrarmos, ardentemente, quão rural é o nosso espírito nacional.
Viva São João!!! Viva o Povo Brasileiro!!! Viva o Brasil Rural!!!
São João é Parte da Matutização do Sistema Solar
ResponderExcluirbelissimo companheiro Márcio, Viva o Povo Brasileiro!!! Viva o Brasil Rural!!! Viva São João!
ResponderExcluirPois é, VIVA SÃO JOÃO. As festas juninas nos fazem ter orgulho do Brasil rural, sofrido mas gentil e hospitaleiro. Espero que as universidades do "interior" consigam acabar com o estereótipo do "matuto", que de bobo não tem nada. Adorei seu artigo, agora entendo por que o cheirinho de fumaça de fogueira me deixa tão feliz :)))
ResponderExcluirBrasil Rural,
ResponderExcluirQue saudades...
Parabens Marcio pelo seu trabalho.
Viva Sao Joao!!!
Concordo plenamente com sua exposição de ideias, Sao Joao atinge com plenitude os anseios do brasileiros quando a confraternizaçao.
ResponderExcluirSaudações crísticas, e agroecológicas, Professor Márcio!
ResponderExcluirBom dia!
Quero dizer que desde o momento, há alguns anos, que vi a questão da ruralidade/urbanidade brasileira ser discutida, em um dos programas do Globo Rural, e mais, fortemente, dentro das discussões territoriais, que ficou muito claro, para mim, a noção de que somos um país, eminentemente, rural. Disso não tenho dúvidas por tomar como base uma série de pequenas, e triviais, observações que venho fazendo ao longo do tempo. Tanto em Campina Grande, como em Cabaceiras, onde moro, há pouco mais de 8 (oito) anos. No caso de Cabaceiras, não há o que discutir. Município com menos de 5.000 habitantes, e com um modus vivendi, totalmente, calcado no ambiente rural. No caso de Campina Grande, ainda é, plenamente, visível, perceptível aspectos de ruralidade, no cotidiano. Em vários pontos das áreas periféricas da cidade, temos currais, pequenos sítios, pequenas criações (galinhas, patos, porcos etc), plantios de feijão, milho, batata-doce etc. Isto em termos bem práticos. Mas, em termos mais subjetivos, também, identificamos comportamentos que são bem característicos do "viver" rural. O modo de falar, as crenças, as superstições, as relações de convivência com vizinhos e outras situações. Por exemplo, o hábito de cumprimentar as pessoas, ainda que desconhecidas, por onde passam, é algo bem característico da zona rural. E muito presente, em Campina Grande, nos indivíduos que têm origem na zona rural.
Acredito, dentro da minha total ignorância, no que concerne ao aprofundamento teórico, em termos de ruralidade, que o critério de número de habitantes seja muito relativo para determinar um município como sendo rural, ou urbano. Acho que você, Márcio deixou muito transparente, em vosso texto, que, embora, os números nos forneçam alguns, por assim dizer, parâmetros, as relações identitárias, subjetivas, e produtivas definem, bem melhor a ruralidade, ou urbanidade.
Mesmo os que vivem, há muito tempo, na cidade, mas que possuem origem rural, não conseguem abandonar, completamente, todos os seus hábitos, e convicções adquiridos naquele espaço. Certa vez comentei com meu pai , originário da zona rural de Soledade, e radicado em Campina Grande, há mais de 40 anos, em conversa sobre questões alimentares que ele havia saído do sítio, mas o sítio não havia saído dele. E ele concordou.
No mais, congratulações pelo excelente artigo.
www.agrariaspolocabaceiras.blogspot.com
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Pois é Caniello, muito oportuno o seu texto, eu como uma Caririzeira, considero os festejos juninos muito importante para celebrar a vida na companhia dos familiares e amigos.
ResponderExcluirViva São João, Viva São Pedro e Viva o Brasil Rural!
Como um apaixonado pelos estudos rurais e pelo São João, concordo plenamente com as considerações presentes no seu artigo!!!
ResponderExcluirViva o rural Brasileiro, que não morre, mas se modifica...