sexta-feira, 27 de maio de 2011

A caprinocultura e o desenvolvimento do Semiárido: uma proposta da UFCG

cabra foi o primeiro animal domesticado pelo Homem para produzir alimentos (leite e carne), há cerca de 9.500 anos no Oriente próximo, onde hoje se situam a Síria e a Palestina[1]. Desde então, a caprinocultura espalhou-se pelo Mundo, pois esses animais são dóceis e de fácil manejo, pouco exigentes qualitativa e quantitativamente em termos alimentares, além de serem extremamente adaptáveis a, praticamente, qualquer clima, altitude, latitude ou longitude terrestres.
Segundo dados da FAO, o rebanho caprino mundial tem cerca de 880 milhões de cabeças[2], com forte concentração nos países subdesenvolvidos e em desenvolvimento (mais de 90% do total). A China tem o maior efetivo, com mais de 152 milhões de cabeças, seguida pela Índia com 126 milhões e Bangladesh com 60 milhões. O Brasil é o 17º criador mundial, com um efetivo caprino de pouco mais de 9 milhões de cabeças, o que representa apenas 1% do total mundial (ver tabela). Considerando-se as dimensões territoriais do Brasil e as condições favoráveis para a criação de caprinos no país, é de se concluir que ainda há uma boa margem para a expansão da caprinocultura brasileira.


De fato, a criação de caprinos no Brasil tem oscilado bastante nos últimos 25 anos, configurando-se três períodos bem definidos, como se pode observar no gráfico: no primeiro período, entre 1974 e 1991, houve um aumento de 70% no efetivo caprino, que passou de 7 milhões para 12 milhões de cabeças em 17 anos; depois, houve um período de forte queda em apenas cinco anos (1992-1996), quando o número de cabeças praticamente retornou ao nível de 1974; e, finalmente, observa-se um novo período de crescimento do rebanho a partir de 1997, que atingiu seu ápice no ano de 2006, quando o efetivo passou de 10 milhões de cabeças, mas que recuou novamente para um rebanho de pouco mais de 9 milhões de animais em 2009, equiparando-se ao efetivo caprino do ano de 1983[3].


A caprinocultura no Brasil é uma atividade realizada majoritariamente por pequenos produtores, pois 68% do rebanho é criado em propriedades com até 100 hectares. Por outro lado, a criação de caprinos está fortemente concentrada na região Nordeste, que responde por 91% do rebanho nacional. No que tange à produção, sabe-se que 67% do leite de cabra é produzido por agricultores familiares, sendo que no Nordeste essa taxa chega a 73% do total[4].



Assim, em virtude das características adaptativas dos caprinos ao semiárido, do perfil socioeconômico dos criadores brasileiros e por ser uma atividade historicamente desenvolvida na região mais pobre do país, a caprinocultura vem sendo considerada como uma atividade estratégica para o desenvolvimento do Nordeste.
De fato, o potencial econômico da caprinocultura é imenso.
A carne se destaca por sua qualidade nutritiva em virtude dos baixos teores de colesterol, calorias e gorduras de cobertura e intramuscular, pelo seu sabor característico, maciez e suculência, e, quando processada adequadamente, em cortes especiais resfriados e congelados, pelo seu forte apelo mercadológico[5]. Além disso, a carne caprina é a pièce de résistance do cardápio local e desempenha um papel importante no contexto da gastronomia e do turismo, atividades fundamentais no quadro da “pluriatividade” que deve caracterizar o desenvolvimento sustentável do semiárido.
As peles de caprinos, que são um subproduto importante da pecuária de corte, podendo representar até 30% do valor comercial da carne[6], são valorizadas no mercado pela maior elasticidade, resistência e textura apresentadas, prestando-se, assim, para um maior número de produtos nas indústrias de vestuário e de calçados[7].
Mas o grande destaque são os laticínios. O leite de cabra tem 20% mais cálcio e até 30% menos colesterol que o leite de vaca, possuindo menor teor de açúcar e teores semelhantes de proteínas e vitaminas[8]. É mais digestivo, pois leva cerca de 40 minutos para ser absorvido, enquanto o leite bovino demora, em média, duas horas. Alcalino como o leite materno, ao contrário do leite de vaca que é ácido por natureza, é o substituto ideal do leite humano na lactação infantil, especialmente para os 6% de crianças alérgicas a lactose que existem no Mundo. O queijo, isso é um fato notório e sabido, é um alimento sofisticado e apreciado pelos melhores paladares, o que lhe confere altos índices de valor agregado quando processado segundo padrões rigorosos de qualidade, como na França e na Espanha, por exemplo.
Entretanto, quase a metade do leite de cabra produzido no Brasil, que é apenas o 15º produtor mundial, é para o autoconsumo das famílias produtoras, pois, em 2006, dos 35,7 milhões de litros produzidos, foram vendidos 19,7 milhões de litros (55%)[9]. Por outro lado, metade do leite de cabra vendido no país é adquirido pelos governos dos estados da Paraíba e do Rio Grande do Norte para uso em programas institucionais[10], como a merenda escolar.
Embora seja alentador saber que o leite de cabra, um produto de alta qualidade nutritiva, bastante superior ao leite de vaca, adquirido pelos governos a preços compensadores aos pequenos produtores locais, esteja sendo consumido pela população carente da região mais pobre do Brasil, não pode haver dúvida que, realmente, o potencial econômico da caprinocultura está subexplorado no país e no Nordeste, a maior região produtora, e que, portanto, esta atividade deve ser fomentada como uma estratégia para o desenvolvimento do semiárido.
Contudo, é preciso garantir a sustentabilidade dessa estratégia.
Em primeiro lugar, é necessário reduzir o impacto ambiental da atividade, pois se os caprinos são adaptados ao semiárido, a recíproca não é verdadeira. A pecuária extensiva no semiárido tem levado ao sobrepasto, especialmente nos períodos de estiagem, o que se constitui num dos principais fatores da desertificação, grave processo de degradação do solo em curso no semiárido brasileiro. Assim para que a atividade seja ampliada, é necessário, antes de mais nada, difundir a cultura do semiconfinamento articulada ao desenvolvimento do manejo da forragem através de tecnologias bastante simples, como a fenação e a silagem, por exemplo. Além de reduzir o impacto ambiental, estas medidas ampliam a sustentabilidade econômica da atividade ao garantir a alimentação para os animas durante todo o ano, evitando que o criador seja obrigado a vender suas cabeças bem abaixo do preço de mercado durante os períodos de seca, quando as dificuldades para a nutrição dos animais são enormes.
Também é necessário investir no melhoramento genético das raças, na assistência técnica aos produtores, no cooperativismo, no desenvolvimento da agroindústria e no próprio marketing dos produtos.
Como fazer isso? Com Ciência & Tecnologia, extensão rural, mobilização social, empreendedorismo e políticas públicas.
Desenvolvendo suas atividades de ensino, pesquisa e extensão, a UFCG tem contribuído muito para esse processo e foi com essa filosofia prática que o Centro de Desenvolvimento Sustentável do Semiárido (CDSA) foi criado e vem agindo. Por exemplo, mesmo antes de sua instalação, o Projeto Universidade Camponesa (UNICAMPO), gérmen do Campus de Sumé, desenvolveu e difundiu a técnica da silagem entre os assentados da reforma agrária na região, projeto-piloto que teve grande repercussão em todo o Cariri e foi matéria do Programa Globo Universidade (veja o vídeo), levando o Fórum do Território da Cidadania e as prefeituras da microrregião a adotá-la como tecnologia prioritária para o fomento da caprinocultura. Hoje todos os municípios possuem pelo menos uma ensiladeira ou forrageira à disposição dos criadores, adquirida com recursos do Ministério do Desenvolvimento Agrário a partir de decisão coletiva do Fórum Territorial.
Para aprofundar essa política de mobilização social produtiva e o desenvolvimento e difusão de Ciência & Tecnologia a serviço da agropecuária e da agroindústria sustentável no semiárido, o CDSA está propondo a criação do Núcleo de Produção Agropecuária (NUPAGRO), projeto em pauta na próxima reunião do Colegiado Pleno do Conselho Universitário da UFCG (leia o projeto e a minuta do regimento).
A equipe do NUPAGRO[11] está elaborando o plano de negócios do Núcleo e o projeto executivo do parque agroindustrial modelo a ele associado, mas já firmou uma parceria com a Associação dos Produtores Agroecológicos de Sumé, apóia e dá assistência técnica a associações e cooperativas de agricultores familiares com vistas à sua inserção no Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) no território do Cariri, além de apoiar o desenvolvimento, em parceria com o Projeto Universidade Camponesa e a Prefeitura de Sumé, de 23 microprojetos produtivos financiados pelo MDA/Fórum do Cariri implantados em propriedades familiares de ex-alunos do Curso de Extensão “Formação de agentes de desenvolvimento” (MDA/CNPq/UNICAMPO) de 17 municípios do Cariri.
O NUPAGRO já vem mobilizando professores, estudantes e servidores técnico-administrativos do CDSA, que terão um ambiente vivo para o desenvolvimento de projetos de pesquisa e extensão, alguns deles já em curso, como: melhoramento animal e vegetal (Curso de Engenharia em Biotecnologia e Bioprocessos), nutrição animal e energias alternativas (Curso de Engenharia de Biossistemas), conservação de solos, manejo ambiental sustentável e agricultura orgânica (Curso Superior Tecnológico de Agroecologia), desenvolvimento de produtos e processos agroindustriais (Curso de Engenharia de Produção), cooperativismo, administração rural e gestão de projetos produtivos (Curso Superior Tecnológico de Gestão Pública), entre outros.
O NUPAGRO também já vem sensibilizando pessoas e instituições dentro e fora da UFCG, a exemplo do PEASA, Fundação Parque Tecnológico da Paraíba, Instituto Nacional do Semiárido (INSA), SEBRAE, EMBRAPA Caprinos e Ovinos, Secretaria de Agricultura Familiar da Paraíba e a Embaixada da Espanha no Brasil, que já alinhavaram conosco uma parceria para a instalação de um Laticínio Escola no NUPAGRO. Já no próximo semestre, mestres queijeiros espanhóis virão ao campus ensinar aos camponeses caririzeiros como fazer os excelentes queijos de leite de cabra da Espanha.
Este será apenas o primeiro passo para a realização da grande vocação do NUPAGRO: ser um parque agroindustrial modelo no campus da UFCG em Sumé, que agirá como uma espécie de “catalisador” para o desenvolvimento sustentável do Cariri paraibano, com sua fazenda experimental, laboratórios, plantas semi-industriais, empresas júniores e a incubadora mobilizando professores, estudantes, servidores, produtores familiares e empreendedores em torno da construção de um projeto de desenvolvimento inovador, sustentável e socialmente justo para o semiárido brasileiro.


[1] MAZOYER, Marcel & ROUDART, Laurence. História das agriculturas no mundo do Neolítico à crise contemporânea. São Paulo, Editora UNESP; Brasília, NEAD, 2010, p. 103.
[2] http://faostat.fao.org. Acesso em 23/05/2011.
[3] IBGE, Pesquisa Agropecuária Municipal.
[4] IBGE, Censo Agropecuário, 2006.
[5] GUIMARÃES FILHO, Clóvis & HOLANDA JR., Evandro V.: “A caprinocultura com alternativa de uso sustentado dos recursos do semi-árido: proposições para o desenvolvimento integrado da zona caprinícola do semi-árido baiano”. Trabalho apresentado no Seminário Internacional Sociedades e Territórios no Semi-Árido Brasileiro: em busca da sustentabilidade. Campina Grande, UFCG, dezembro de 2002.
[6] MEDEIROS, A. N. Caprinocultura de corte no Nordeste brasileiro. http://www.capritec.com.br/.
[7] CARVALHO, Rubênio Borges de. Potencialidades dos Mercados para os Produtos Derivados de Caprinos e Ovinos. http://www.capritec.com.br/.
[8] ALVES, Francisco Selmo Fernandes: “O leite de cabra é tão nutritivo quanto os leites de vaca e materno?”, Revista Ciência Hoje, vol. 32, nº 189, dezembro de 2002.
[9] IBGE, Censo Agropecuário, 2006.
[10] CORDEIRO, Paulo Roberto Celles Cordeiro & CORDEIRO, Ana Gabriela Pombo Celles. A Produção de leite de cabra no Brasil e seu mercado. X Encontro de Caprinocultores do Sul de Minas e Média Mogiana. Espírito Santo do Pinhal, Maio 2009.
[11]Profa. Ana Cristina Chacon Lisboa (Zootecnista) - Coordenadora, Prof. Edvaldo Eloy Dantas Junior (Engenheiro Agrícola) – Coordenador adjunto, Profa. Adriana Meira Vital (Engenheira Florestal) – Coordenadora de Produção Vegetal, Prof. Jean César Farias de Queiroz (Dr. em Biotecnologia) – Coordenador de Biotecnologia, Prof. Francisco Kegenaldo Alves de Sousa (Engenheiro de Produção), Valdir José Costa Padilha (Técnico Agrícola), Carla Mailde Feitosa Santa Cruz (Técnica em Agroindústria), Osiran Felício de Lima (Administrador), Gerente Administrativo.

quinta-feira, 19 de maio de 2011

MEC destaca Projeto de Extensão da UFCG

Transcrevo abaixo matéria de Ionice Lorenzoni divulgada na página eletrônica do MEC sobre o Projeto Fogão Solar, executado pela equipe do Projeto UniCampo.

Um projeto de extensão da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), no campus do município de Sumé, no Cariri paraibano, ensinou 81 famílias de dois assentamentos da reforma agrária a construir um tipo de fogão solar e a cozinhar. Economia de tempo e de trabalho das mulheres, de consumo de lenha e carvão, proteção do meio ambiente são pontos de destaque do projeto.
Para o diretor do campus, Márcio Caniello, o repasse de conhecimentos e de tecnologias e a interação com as comunidades são deveres da universidade. “Nossa missão é promover o desenvolvimento da Paraíba com projetos de extensão e pesquisa”, diz. O campus começou funcionar em julho de 2009 e integra o programa de expansão das universidades federais do Ministério da Educação.
Em fevereiro e março deste ano, professores e estudantes da unidade da UFCG em Sumé realizaram quatro oficinas sobre o fogão solar com agricultores dos assentamentos Novo Mundo, no município de Camalaú, e Serrote Agudo, município de Prata. 
Nas oficinas, explica a diretora do projeto, Luciana Cantalice, as famílias receberam informações sobre modos de proteger o meio ambiente com práticas simples como substituir parte do cozimento das refeições com o uso da energia solar. No Nordeste, diz o professor Caniello, a lenha é significativa na matriz energética. Substituir seu uso, pelo menos em parte, tem impacto positivo na vida das comunidades e na preservação.
Desconfiança. Essa foi a reação imediata dos assentados na possibilidade efetiva de cozinhar com o calor do sol, mas a experiência deles mostrou que é viável, diz a diretora. A tecnologia do fogão solar que chegou ao Cariri paraibano foi desenvolvida pelo professor Olívio Teixeira, da Universidade Federal de Sergipe, e repassada ao campus de Sumé. 
O fogão é feito com duas caixas de papelão de 60 x 60 centímetros, embutidas, altura de 40 centímetros, uma chapa de zinco pintada de preto fosco que fica no fundo da caixa, papel alumínio para revestimento interno, cola, fita adesiva e um vidro para cobrir. O custo unitário é de R$ 65,00. Em 2010, o campus de Sumé recebeu R$ 50 mil do Banco do Nordeste para executar o projeto nos dois assentamentos.
De acordo com Luciana Cantalice, nas oficinas os agricultores receberam o conjunto de materiais do fogão solar adquirido pela universidade e aprenderam a montá-lo. Nos assentamentos Novo Mundo e Serrote Agudo, 81 famílias fizeram os fogões, aprenderam a usá-los e aprovaram a tecnologia. Se não ficar exposto à chuva e ao sereno, a duração do fogão é de dois anos.
120 graus – O fogão exposto ao sol do Cariri alcança 120 graus centígrados e demora um pouco mais que na cozinha convencional para preparar os alimentos, mas dispensa cuidados como manter o fogo aceso com lenha ou carvão ou controlar o gás de botijão. Para cozinhar, os alimentos são colocados na caixa em panela fechada com tampa e para assar, em assadeira.
Na experiência dos assentamentos do Cariri, o arroz cozinha em 1h30, o feijão verde em 2h30, o peixe assa em 1h30, a carne bovina ou de bode em 2h30. E não queima os alimentos, explica a diretora. Depois das primeiras desconfianças nas possibilidades do fogão, Luciana diz que as mulheres se entusiasmaram com o projeto e começaram a assar bananas, pães, bolos. Deu certo e hoje a comunidade está reunindo receitas que vai divulgar em livro com apoio do campus.
Com temperatura média anual de 25 a 27 graus centígrados, 2.800 horas de sol por ano, chuvas escassas, a população rural do Cariri paraibano pode usar a tecnologia do fogão solar com vantagem, explica Márcio Caniello. Em 2011, o campus vai apresentar novo projeto ao Banco do Nordeste na tentativa de obter mais recursos para replicar o fogão solar em outros assentamentos.
Longe da capital – A universidade chegou à região há dois anos, tem 788 estudantes em cursos superiores de graduação, dos quais 75% são do Cariri e 90% deles da Paraíba. A criação da unidade da UFCG em Sumé faz parte da primeira fase de expansão das universidades federais promovida pelo Ministério da Educação, a partir de 2005. 
O município de Sumé, com 16 mil habitantes segundo o censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2010, fica a 130 quilômetros de Campina Grande, onde está a sede da universidade, e a 264 quilômetros de João Pessoa, a capital do estado. O Cariri paraibano, que ocupa o sul do estado, reúne 29 municípios onde vivem 160 mil pessoas. 

Ionice Lorenzoni

domingo, 15 de maio de 2011

Mais Escolas Agrotécnicas para o Nordeste

Segundo dados do último censo, há cerca de 30 milhões de pessoas vivendo no campo no Brasil, quase a metade delas concentradas na região Nordeste, que possui uma população rural de 14,3 milhões de pessoas, constituindo-se, assim, na região com o maior percentual de população nessa condição de domicílio. Isto é, 26,9% dos nordestinos vivem no campo.
No que tange à estrutura etária da população, o Nordeste ainda tem características de uma população jovem, segundo o IBGE. Embora os níveis de fecundidade tenham caído pronunciadamente a partir da década de 1980, o que provocou uma drástica redução no grupo de crianças menores de 5 anos, a população em idade escolar ainda é bastante significativa, representando 38% do total, mais de 20 milhões de crianças e jovens.
Ainda não foram divulgados todos os dados sobre a escolaridade dos brasileiros, mas, em relação ao analfabetismo, mais uma vez a região Nordeste é o destaque negativo no censo, pois apresenta hoje uma taxa de 19,1% de analfabetos na população acima de 15 anos, muito próxima à do Brasil em 1991 (20,1%). Isto é, em termos de combate ao analfabetismo, o Nordeste apresenta uma defasagem de 20 anos em relação à média nacional. Quando comparamos regionalmente, a discrepância é ainda mais gritante: hoje a região Sul apresenta uma taxa de analfabetismo de 5,1%, a menor do Brasil, seguida pelo Sudeste (5,5%), Centro-Oeste (7,2%) e Norte (11,2%). Assim, a taxa de analfabetismo no Nordeste é cerca de quatro vezes maior do que no Sul e Sudeste e quase o dobro da região Norte.
Ademais, sabe-se que apesar do aumento do número de estabelecimentos que oferecem o nível médio nas comunidades rurais verificado pelos censos escolares realizados pelo INEP/MEC nos últimos anos (de 679 em 2000 para 2.173 em 2009), sua oferta se encontra ainda longe da universalização, assim como a oferta dos anos finais do ensino fundamental. Em relação ao ensino profissionalizante, a situação é ainda mais grave, pois, no Brasil apenas 4% dos estabelecimentos que oferecem este tipo de ensino estão implantados na zona rural. No Nordeste, são 6%[1].
Esta situação requer, evidentemente, uma política de expansão da oferta de educação de qualidade para os povos do campo, notadamente no Nordeste, a região mais rural e a segunda mais jovem do Brasil. Por outro lado, não basta apenas oferecer ensino propedêutico para os jovens do campo nordestinos, pois muitos deles estão dispostos a dar continuidade aos empreendimentos rurais de seus pais e avós, o que se pode verificar pela significativa presença de jovens agricultores familiares na dinâmica do Programa Territórios da Cidadania na região.
De fato, o Projeto Universidade Camponesa (UniCampo), ação de extensão que a Universidade Federal de Campina Grande desenvolve desde 2003, tem demonstrado que projetos educacionais voltados para uma formação técnica focada nas novas tecnologias sustentáveis para a agropecuária no Semiárido são muito bem vindos entre os jovens agricultores familiares[2], pois além de lhes conferirem auto-estima e “empoderamento”, abrem reais oportunidades para que assumam o empreendimento familiar, renovando-o e revitalizando-o[3].
Os trabalhos desenvolvidos ao longo da experiência do Projeto Unicampo convenceram os participantes de que, malgrado as extremas vulnerabilidades ambientais, sociais, políticas e econômicas do Bioma Caatinga, o Semiárido brasileiro é um lugar pleno de possibilidades de existência digna para os camponeses. Assim, os trabalhos demonstraram a capacidade coletiva de produção de conhecimentos para melhor se identificar estas potencialidades e valorizá-las num projeto renovado de desenvolvimento sustentável.
Este conjunto de repercussões positivas levou a UFCG a criar um Campus da Instituição em Sumé, na região do Cariri paraibano, fundamentado nas perspectivas político-pedagógicas do Projeto Universidade Camponesa, inaugurado em setembro de 2009. No referido campus, onde funciona o Centro de Desenvolvimento Sustentável do Semiárido, é oferecido o Curso Superior de Tecnologia em Agroecologia, que institucionalizou definitivamente os princípios pedagógicos da UniCampo, bem como um Curso de Licenciatura em Educação do Campo, voltado à formação de professores para a zona rural.
Mas, além da ampliação do acesso ao ensino superior para os jovens rurais e o desenvolvimento de projetos de extensão que promovam sua inclusão educacional, é preciso investir na ampliação da oferta de ensino básico profissionalizante através da implantação de escolas agrotécnicas em toda a região.
Penso ser esta uma ação estratégica para o próprio desenvolvimento sustentável do Nordeste brasileiro, a região mais rural e a segunda mais jovem do Brasil, uma vez que a formação de mão de obra especializada pode reduzir o êxodo campo-cidade ao abrir novas oportunidades de emprego e renda para esses milhões de jovens empreendedores do campo, dinamizando o sistema produtivo agropecuário na região e revigorando a agricultura familiar nordestina pelas mãos dos jovens camponeses.

[1] Sinopse Estatística da Educação Básica, 2009. Brasília, MEC/INEP, 2010.
[2] Ver, por exemplo, "As boas sementes do Cariri paraibano”. Revista Problemas Brasileiros, Ano XLVII, Nº 392, março/abril de 2009 (http://migre.me/4xTC6).
[3] LEAL, Fernanda, CANIELLO, Márcio, TONNEAU, Jean-Philippe. “Projeto UniCampo: uma experiência de extensão no Cariri paraibano”. In: CORRÊA, E. J., CUNHA, E. S. M. e CARVALHO, A. M. (Orgs.). (Re)conhecer diferenças, construir resultados. 1ª ed. Brasília: UNESCO, 2004, pp. 209-217 (www.ufcg.edu.br/~unicampo/textos.htm); DUQUÉ, Ghislaine, CANIELLO, Márcio e TONNEAU, Jean-Philippe. “Lideranças Camponesas da UniCampo: processo de empoderamento”. In: Anais da VI Reunião de Antropólogos do Mercosul. Montevidéu - Uruguai, 2005. COUDEL, Emilie. Formation et apprentissages pour le développement territorial : regards croisés entre économie de la connaissance et sciences de gestion. Réflexion à partir d’une expérience d’Université Paysanne au Brésil. Tese de Doutorado. Montpellier, SUPAGRO, 2009 (www.supagro.fr/theses/extranet/09-0003_Coudel.pdf).

sábado, 7 de maio de 2011

O Brasil mostra a sua cor


Um dos resultados mais impressionantes do Censo 2010, revelado pela sinopse recentemente divulgada pelo IBGE, não teve a menor repercussão na mídia, pois os jornais, as revistas, os canais de televisão e até os portais da internet limitaram-se a reproduzir, em análises rasas e repletas de “infográficos”, o release do IBGE, ressaltando a redução na taxa média de crescimento populacional anual, o “envelhecimento” da população, algumas curiosidades regionais sobre a razão de sexos, o problema do analfabetismo (que já analisamos aqui) e a surrada tese do inexorável processo de urbanização do país.

De duas, uma: ou suas enormes equipes de “especialistas” não tiveram a paciência de investigar um pouquinho mais as informações disponibilizadas pelo IBGE, ou a omissão sobre a composição étnica da população brasileira revelada pelo último censo está a denunciar, mais uma vez, a nossa hipócrita ideologia racial.
De fato, pela primeira vez na história deste país, as estatísticas oficiais revelam o que muitos antropólogos, sociólogos e movimentos sociais vêm afirmando há anos: o Brasil não é um país de população majoritariamente branca, pois 96.795.294 pessoas se declararam “pretas” ou “pardas”, totalizando 50,74% do total, ao passo que 91.051.646 se disseram “brancas” (47,73%). A contagem apontou também 2.084.288 “amarelos”, isto é, chineses, japoneses, coreanos etc. (1,09%) e uma população indígena de 817.963 pessoas (0,43%).


Quando comparamos esses resultados com os dados do censo anterior e consideramos a taxa de crescimento populacional do Brasil na década, concluímos que, anteriormente, os dados oficiais revelavam uma composição racial da população brasileira longe da realidade, com uma forte subestimação das populações não brancas.
Ora, por um lado, houve uma drástica redução de cor e raça “ignoradas”, cujo total caiu de 1.132.990 em 2000 (0,67%) para irrelevantes 6.608 em 2010 (0,003%). Por outro lado, observou-se uma discreta diminuição da população branca (-0,27%), que se contrasta com um extraordinário aumento da população amarela (173,68%), um grande aumento das populações preta (37,55%) e parda (25,96%) e um aumento proporcional da população indígena (11,42%).


Assim, afora o crescimento da população indígena, cujo total permaneceu representando algo em torno de 0,43% da população do país, todos os outros coeficientes apurados parecem ser “pontos fora da curva”, a se considerar o aumento de 12,34% da população brasileira na última década. Com efeito, sabendo-se que não houve nenhum “surto migratório” de orientais para o país, nada explica, a não ser a subestimação no censo anterior, que a população de raça amarela tenha aumentado quase quinze vezes mais do que a média nacional. Por outro lado, parece não haver uma explicação demográfica plausível para que a população negra tenha aumentado o triplo e a parda mais do que o dobro da média nacional, enquanto a população branca, que representa quase a metade do total, tenha diminuído na mesma década.

Cor/Raça
2000
2010
Branca
91.298.042
53,77%
91.051.646
47,73%
Preta
10.554.336
6,22%
14.517.961
7,61%
Parda
65.318.092
38,47%
82.277.333
43,13%
Amarela
761.583
0,45%
2.084.288
1,09%
Indígena
734.127
0,43%
817.963
0,43%
Ignorada
1.132.990
0,67%
6.608
0,003%
TOTAL
169.799.170
100%
190.749.191
100%


Há que se ressaltar que até o censo de 2000 a pergunta sobre a cor/raça só constava do questionário completo (que não é aplicado a todos os respondentes, mas apenas a uma amostra de domicílios) e que no último censo todos os brasileiros responderam essa questão, mas não seria de se esperar tal discrepância entre a realidade apontada em 2000 e em 2010, uma vez que a base amostral do censo é bastante ampla. Isto é, se argumentarmos que tal diferença entre os resultados se deu em função da captação do universo de dados, não poderíamos confiar nas Pesquisas Nacionais por Amostragem de Domícilios (PNADs), realizadas pelo IBGE nos períodos intercensitários com base amostral menor.
Seja como for, além da confirmação estatística de uma verdade histórica há tempos reivindicada pelos movimentos sociais e alguns cientistas sociais brasileiros como Gilberto Freyre, Abdias do Nascimento e Roberto DaMatta, dentre outros, penso que  podemos formular pelo menos uma conclusão importante acerca da composição étnica da população brasileira revelada pelo censo de 2010. Considerando-se que a definição de raça/cor é auto atribuída, é de se supor que tenha havido um fortalecimento da identidade das pessoas de cor no Brasil, levando-se em conta, por um lado, a vertiginosa queda da subdeclaração (raça/cor “ignorada”) e, por outro lado, o crescimento inusitado do número de pessoas que se autodeclaram “pretas”, “pardas” ou “amarelas”. Reforça essa suposição a redução, mais inusitada ainda, do número de pessoas que se dizem “brancas”.
Minha hipótese é que o fortalecimento identitário dos afrodescendentes e a consequente elevação da auto-estima da população negra brasileira estejam relacionados com as políticas afirmativas empreendidas pelo governo Lula e com o debate acerca delas na sociedade civil. Ponto para o movimento negro, tanto em virtude dessa conquista – digamos - moral, quanto pelo próprio fortalecimento de sua agenda, agora voltada oficialmente para a maioria do povo brasileiro.

domingo, 1 de maio de 2011

Em 20 anos, o Brasil reduziu o analfabetismo pela metade

Os primeiros resultados do Censo de 2010 começam a ser publicados pelo IBGE, que disponibiliza em um hotsite tabelas, mapas e gráficos que oferecem uma verdadeira radiografia do Brasil desde 1872, ano em que foi realizado o primeiro recenseamento geral da população brasileira. É uma fonte preciosa para professores, estudantes e pesquisadores refletirem sobre os mais diversos aspectos da evolução do nosso país.
Na medida em que os dados forem sendo publicados e que outros estudos e dados vierem à luz, vamos postar algumas análises aqui no blog, de maneira a contribuir com uma reflexão: o Brasil será uma potência mundial no Século XXI? Penso que ao superarmos o neoliberalismo na macroeconomia brasileira com as políticas públicas implementadas pelo Governo Lula (2002-2010), demos um grande salto em direção a essa vocação nacional, pois em 2010 atingimos o patamar de 8ª economia do Mundo, segundo avaliação do FMI e do Banco Mundial (em 2002, o Brasil estava em 12º lugar).
Mas, o que dizer sobre as tendências que devem acompanhar o crescimento econômico em direção à conquista do desenvolvimento humano e do desenvolvimento sustentável, rotas fundamentais para construirmos o nosso desenvolvimento como liberdade, como propõe Amartya Sen? Neste sentido, hoje analisaremos os primeiros dados sobre a educação nacional disponibilizados pelo Censo do IBGE.

O Analfabetismo no Brasil

Em 20 anos, a taxa de analfabetismo no Brasil foi reduzida pela metade. Em 1991, 20,1% da população com 15 anos ou mais não sabia ler e escrever, isto é, um em cada cinco brasileiros eram analfabetos. Hoje a taxa de analfabetismo nesta faixa etária é de 9,6%, coeficiente  ainda muito alto, quando comparado com as taxas na América Latina, onde o Brasil fica apenas em 12º lugar, atrás de países como Cuba, que apresenta a menor taxa (0,2%), Uruguai (1,9%), Argentina (2,8%), Chile (4,3%), Venezuela (7,0%) e Colômbia (7,2%), segundo dados publicados pela UNESCO em 2010[1]. Na mesma faixa do Brasil estão Equador (9%), México (9,1%) e Paraguai (9,8%).
Quando comparamos com as taxas dos chamados BRICs, países que se destacaram no cenário mundial pelo rápido crescimento das suas economias em desenvolvimento, o Brasil apresenta uma posição mediana, bem atrás da Rússia (0,6%), que tem o dobro da extensão territorial do Brasil e um PIB 25% menor que o nosso, e se aproximando da China (7,1%), mas à frente da Índia (34,9%) e da África do Sul (12,4%).
Portanto, embora o Brasil apresente uma evolução significativa em termos da erradicação do analfabetismo no país nos últimos 20 anos, é preciso que se acelere muito esse processo, colocando-o no mesmo ritmo do aumento do PIB, pois se hoje somos a 8ª economia do mundo, continuamos apresentando índices de analfabetismo incompatíveis com a grandeza de nossa economia.

O Analfabetismo no Nordeste

Situação bem pior é a da região Nordeste, que apresenta hoje uma taxa de 19,1% de analfabetos na população acima de 15 anos, muito próxima à do Brasil em 1991 (20,1%). Isto é, em termos de combate ao analfabetismo estamos com uma defasagem de 20 anos em relação à média nacional.
Quando comparamos regionalmente, a discrepância é ainda mais gritante, como se pode observar no gráfico: hoje a região Sul apresenta uma taxa de analfabetismo de 5,1%, a menor do Brasil, seguida pelo Sudeste (5,5%), Centro-Oeste (7,2%) e Norte (11,2%). Assim, a taxa de analfabetismo no Nordeste é cerca de quatro vezes maior do que no Sul e Sudeste e quase o dobro da região Norte. Ademais, o Nordeste apresentou o menor ritmo de redução do analfabetismo nestes 20 anos, pois enquanto as regiões Sul e Centro-Oeste reduziram o analfabetismo em cerca de 57% e Norte e Sudeste algo em torno de 55%, a redução no Nordeste foi de apenas 49%.


Portanto, se a conquista do desenvolvimento como liberdade no Brasil depende de uma aceleração na evolução dos coeficientes educacionais e no combate ao analfabetismo em particular, essa operação é ainda mais urgente no Nordeste, a segunda região mais populosa do Brasil, com 53 milhões de habitantes. É preciso que as políticas públicas educacionais tenham tratamento diferenciado e privilegiado para a região, e que os governos federal, estadual e municipais realmente coloquem a educação como principal prioridade em suas gestões.



[1] Campanha Latino-Americana pelo Direito à Educação (Situação Educativa da América Latina e Caribe 2007 / Unesco e Panorama Educativo 2005 Caminhando rumo às Metas / Projeto Regional de Indicadores Educativos - Cúpula das Américas).