A
eleição de Jair Bolsonaro para o mais alto cargo da República tem levado muita
a gente a se perguntar: de quem é a culpa? Não é para menos. Quando se olha
para a história de vida e o discurso do sujeito, é de se ficar estupefato que
um homem tão medíocre e mesquinho tenha conseguido tal proeza.
Capitão
do Exército de carreira curta e pífia, ficou conhecido do público com um artigo
que publicou na Revista Veja em 1986, reclamando dos salários da tropa (veja aqui),
pelo que foi condenado por corte marcial e puxou 15 dias de cadeia. Inconformado
com a punição e ainda insatisfeito com o salário, ele e mais dois colegas da
Arma elaboraram um plano terrorista batizado de “Beco sem saída”, que visava explodir
bombas em quartéis do Exército. O plano era uma chantagem, pois foi vazado por
eles próprios para a mesma Revista Veja, que deu grande destaque à matéria (veja
aqui).
Bolsonaro já usava fake news para
atingir os seus objetivos...
E,
de fato, os atingiu, pois como ele mesmo admite, esse imbróglio fez do capitão
insatisfeito com o seu soldo vereador do Rio de Janeiro, eleito em 1988 (veja aqui).
Com um salário melhor no bolso, entrou logo para a reserva. Bye bye, vida dura
da caserna...
Daí,
trilhou os caminhos do político tradicional brasileiro. Fez carreira
parlamentar, colocou os três filhos para fazer o mesmo e, rapidamente, multiplicou
o patrimônio da família (veja aqui),
ocultando-o quando achou por bem ocultá-lo (veja aqui).
Durante 27 anos, foi um obscuro deputado federal do chamado “baixo clero”,
grupo de parlamentares fisiológicos com pouca influência na Câmara dos
Deputados. O pessoal do “toma lá, dá cá”.
Nesse
tempo todo como deputado, Bolsonaro teve apenas um projeto de lei de sua
autoria sancionado (veja aqui), nunca
relatou proposições de destaque e nem presidiu comissões ou liderou bancada (veja
aqui).
O que o notabilizou foi o seu discurso direitista radicalóide e autoritário. Em
elucubrações raivosas, destila desprezo e ódio a mulheres, negros, índios,
homossexuais, pobres, nordestinos e que tais. Diz que as minorias têm que se
curvar ante a maioria. Defende a ditadura e a tortura. Acha que bandido bom é
bandido morto. Jacta-se de sonegar impostos. Derrama impropérios contra os seus
adversários. Acha bonito ser um brucutu.
No
primeiro turno da eleição, verborrágico de fazer corar um Ciro Gomes, Bolsonaro
só abria a boca para falar besteira. Dizia o que queria e se desdizia ao sabor
das circunstâncias. Admitia, sem qualquer pejo, não entender nada de economia,
saúde ou educação. Suas análises e propostas para o país tinham a profundidade
de um pires. Nos debates, comportava-se como um bufão. Era o bobo da corte.
Com
Lula na disputa, mesmo preso e incomunicável numa solitária em Curitiba,
Bolsonaro não tinha a menor chance, pois o ex-presidente nunca obteve menos do
que 30% da preferência popular nas pesquisas e atingiria 39% na última que foi
feita com o seu nome (veja aqui).
Se a Constituição valesse no Brasil, Lula teria sido eleito no primeiro turno.
Mas, vivemos numa República das Bananas...
Assim,
foram três degraus para a ascensão vertiginosa de Bolsonaro. Primeiro, a
conveniente facada sem sangue em Juiz de Fora, no único dia da campanha em que
ele não usou colete a prova de balas. O “atentado” tirou o bobo da corte de
cena, calou a sua matraca e transformou o brucutu em vítima. Depois, a
impugnação da candidatura de Lula, que removeu a grande pedra do seu caminho. Finalmente,
a disseminação em massa das fake news
pelo WhatsApp, financiada por empresas através de caixa 2, o “me engana que eu
gosto” do eleitorado conservador, turbinado pelo apoio de Edir Macedo, sua
Igreja e emissora de TV. Tudo com o beneplácito de um Judiciário leniente
quando assim lhe interessa. Além da ajuda da imprensa corporativa, é claro.
Mas,
isso não foi suficiente para a vitória de Bolsonaro no primeiro turno. “Bateu
na trave”. O que indica que a estratégia do PT de manter a candidatura de Lula
até a undécima hora foi correta.
No
segundo turno, Bolsonaro seguiu a mesma tática furtiva: nenhum debate com o
adversário; nada de detalhar propostas para o eleitorado; muitas intrigas,
mentiras e bravatas nas redes sociais; entrevistas boazinhas com a imprensa amiga.
Enquanto
isso, Haddad crescia a olhos vistos na campanha, impulsionado pela militância –
orgânica e espontânea – que, num movimento de massa sem precedentes na história
das eleições no Brasil, foi às ruas e às redes sociais para conquistar o voto
dos indecisos, sensibilizar os desalentados com a política a não se absterem ou
votarem em branco ou nulo e, claro, para virar os votos do oponente. Esse foi o
destaque da campanha eleitoral de 2018: a emergência de uma numerosa, ativa e
voluntarista militância democrático-progressista, de esquerda e de
centro-esquerda, composta por gente de todas as idades disposta a lutar por
seus ideais, mas cuja extraordinária dedicação à campanha de Haddad não foi
suficiente para dar-lhe a vitória.
Então,
o que explica a vitória de Bolsonaro?
Em
primeiro lugar, a prisão política de Lula e a mordaça que a Justiça impôs a
ele. O ex-presidente, favorito do povo, não pôde sequer gravar um áudio pedindo
voto para o seu candidato. Permaneceu confinado em Curitiba, sob o tacão do
juiz(?) Sérgio Moro, na verdade um cabo eleitoral de Bolsonaro, cuja máscara
caiu quando ele aceitou o cargo de ministro da Justiça no novo governo.
Em
segundo lugar, a ideologia. O discurso de Bolsonaro “colou” porque faz sentido numa
sociedade autoritária, hipócrita, machista e individualista como poucas. Ora, o
Brasil foi o último país do Mundo a abolir a escravidão e as empregadas
domésticas trabalhavam quase como escravas até 2015. Uma República que foi
proclamada por meio de um golpe militar, que já completou 129 anos e nunca teve
mais de 30 anos seguidos de normalidade democrática. O país da “democracia
racial” fajuta, da boca para fora, e da “cordialidade” cínica, que já não
enganam mais ninguém. Hipocrisia pura. O país em que se registra oficialmente
um caso de violência doméstica a cada dois minutos, um estupro a cada dez
minutos (veja aqui)
e que uma mulher é assassinada a cada duas horas (veja aqui).
O país que é o segundo do Mundo em sonegação de impostos (veja aqui),
cujos profissionais liberais têm dois preços para os serviços que prestam
(“com” ou “sem recibo”), em que o consumidor tem que pedir (e, às vezes,
brigar) por uma nota fiscal, em que empresários, na maior sem-cerimônia, maquiam
a contabilidade, remetem lucros para paraísos fiscais e fazem caixa dois para
si e para políticos amigos. O país em que a classe média endinheirada compra
aparelhinhos chineses para burlar as TVs por assinatura. O país do “topa tudo
por dinheiro” e do “se colar, colou”. Pois é, colou...
Em
terceiro lugar, o antipetismo cultivado pela mídia com o auxílio de um
Judiciário reacionário, parcial e seletivo (“com STF e tudo”), desde que o PT
chegou ao poder. Foram anos e anos de massacre midiático, com o cidadão sendo
diariamente bombardeado com o discurso monocórdico desse nosso jornalismo de release e os editoriais uníssonos do
baronato que controla os meios de comunicação no Brasil. A veiculação, ad nauseam, de interpretações negativas
dos fatos, mesmo quando o país contava com altíssimo respeito internacional e
passava por momentos extraordinariamente positivos, apresentando nítido
desenvolvimento econômico, investimentos robustos na infraestrutura, ampliação
de oportunidades para todos, ascensão social e geração de emprego e renda.
Na
mesma toada, a repercussão diuturna de processos judiciais tendenciosos, sempre
com dois pesos e duas medidas. Nenhum dirigente do PT foi jamais condenado por
enriquecimento ilícito, mas todos os filiados ao partido são considerados
ladrões. Lula, sua família e amigos, seu Instituto e sua empresa de palestras
foram investigados furiosamente. Nunca se descobriu uma conta no exterior, uma
mala (nem sacola) de dinheiro ou qualquer bem ocultado; nenhum pagamento por
palestra que não tivesse os tributos pagos e fosse registrado em seu imposto de
renda; qualquer benesse recebida a que título fosse; sequer uma mísera gravação
de ligação telefônica em que se falasse de propina ou atos ilícitos do
ex-presidente. Lula foi condenado por um juiz-político, num processo “que não
para em pé” (Gilmar Mendes), por uma reforma que não existiu num apartamento
que nunca foi dele.
Uma
mentira repetida mil vezes vira verdade, propalou Goebbels, ministro da
propaganda de Hitler. Assim foi na Alemanha nazista com a fixação, no
consciente coletivo, da imagem do judeu como a causa dos problemas econômicos
do país e, no Brasil, com a cristalização do petralha como o responsável por todos os males da política nacional.
Em ambos os casos, são “arquétipos do mal” construídos para servirem como uma
cortina de fumaça entre os interesses da direita e a psique coletiva de sociedades
autoritárias e conservadoras. Assim, culpar o PT pela vitória de Bolsonaro é
como culpar a mulher sexy pelo estupro que ela sofreu.
Se
a culpa não foi do PT, também não foi de Ciro Gomes que, embora tenha tirado
férias no segundo turno, ficado em cima do muro como um tucano e agido, com o
irmão, como um quinta-coluna, seu eleitorado migrou em massa para Haddad no momento
decisivo.
De
fato, quando olhamos para os números da eleição (veja o Quadro abaixo),
percebemos que Haddad teve uma evolução de 50,09% no seu desempenho, saindo de 31.342.051
votos no primeiro turno (29,28%) para 47.040.906 no segundo (44,87%), isto é, 15.698.855 votos a mais. Ciro (13.344.371
votos no primeiro turno), Marina, Boulos e Goulart Filho, cujo eleitorado
apresenta um perfil de centro-esquerda, obtiveram, juntos, 15.061.247 votos,
que é uma grandeza numérica bem semelhante ao crescimento de Haddad e,
portanto, podemos inferir que houve uma transferência massiva desses votos para
ele. Evidentemente não houve 100% de transferência e, mesmo assim, ainda ficariam
“faltando” 637.608 mil votos para completar a diferença que, tudo indica,
vieram majoritariamente dos votos brancos virados, pois esses diminuíram em 620
mil do primeiro para o segundo turno.
Quadro 1 – Transferência de Votos do 1º ao 2º Turno (Inferência)
Eleições Presidenciais – Brasil, 2018
Fonte: elaboração própria com dados do TSE
Por outro lado, Bolsonaro evoluiu também (17,29%), tendo obtido 8.520.837 votos a mais no segundo turno, os quais devem ter sido herdados, majoritariamente, de Alckmin, Amoêdo, Daciolo, Meirelles, Álvaro e Eymael, candidatos alinhados ideologicamente a ele, que, entretanto, haviam somado 11.314.679 votos no primeiro turno. Assim, “sobrariam” 2.793.842 votos, o que indica que a imensa maioria dos eleitores deles que não votaram em Bolsonaro, também não votaram em Haddad, como o eleitorado ideológico de Vera (55.762 votos no primeiro turno), considerando-se o histórico do PSTU. Com efeito, somando-se as “sobras” de Alckmin, Amoêdo, Daciolo, Meirelles, Álvaro e Eymael com os votos de Vera, obtemos um total de 2.849.604 votos, montante bem próximo das 2.832.416 abstenções e votos nulos adicionados no segundo turno.
Bem,
se é assim, de quem, afinal, é a responsabilidade pela eleição de Jair
Bolsonaro? Elementar, meus caros e caras. A responsabilidade é de quem votou nele.